DIGESTIVOS
Quarta-feira,
27/11/2002
Digestivo
nº 109
Julio
Daio Borges
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+ 2 Comentário(s)
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Além do Mais
>>> Xêiquispir
Lembra daquela carta do Chico Buarque ao Poetinha, em que eles discutiam animadamente a letra de "Valsinha"? E da mensagem que Ruy Castro e Miguel Paiva enviaram a Ivan Lessa (de Lisboa), só com títulos de músicas americanas mal traduzidas? E do diário do Antonio Callado, começado em 1995, muito a contragosto, e nunca mais concluído? Quem não lembra ou nunca ouviu falar pode se deparar com essas raridades no livro "Achados", de Caique Botkay, pela editora Nova Fronteira. Trata-se, na verdade, de uma coleção de afetos eletivos. Amigos, namoradas, conhecidos, parentes - gente que Botkay foi colecionando ao longo da vida. De repente, ocorreu pedir-lhes uma velharia qualquer, ou melhor: uma relíquia, e a partir daí montar um álbum de guardados sui generis. Não vale, portanto, cobrar qualquer rigor do autor. É mais fácil pular algumas participações, menores. O que mais se vê são poemas. Logo, é natural desconfiar de sua qualidade. Ainda mais quando seus autores não são do ramo (Tonico Pereira, o Zé Carneiro, e Seu Joaquim Bezerra, o porteiro do prédio da ex-mulher de Botkay, estão nessa lista). Também quando a pretensão supera, de longe, o resultado final (Fausto Fawcett e os Jovens Poetas, da família ou descendentes de amigos, estão nessa lista). Acontece que os grandes momentos valem, sozinhos, o livro. Como quando Drummond resolveu esclarecer finalmente um de seus maiores enigmas: "Quem sabe se uma pedra no caminho / Não é mais que um pedido de carinho?". Ou então quando Irles Coutinho, a esposa daquele irmão do Henfil, resolveu fazer uma declaração a seu filho: "Amar você nunca foi somente uma tarefa de 'mãe' (às vezes, muito chata, como você percebe agora)". Ou ainda quando Ziraldo resolveu contar, em quadrinhos, "A História Maravilhosa de Nossa Senhora de Fátima". Sendo Caique Botkay um compositor de música para teatro, com passagens por outras artes, nomes como Tom Jobim, Noel Rosa e Edu Lobo se misturam aos de Ítalo Rossi, Sergio Britto e José Lewgoy. Talvez porque no Brasil a feijoada completa seja um dos pratos preferidos. A salada, a interpenetração e a miscigenação, aqui, são típicas. Nesse sentido, "Achados" é fidelíssimo.
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>>> Achados - Caique Botkay - 239 págs. - Nova Fronteira
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Música
>>> Time stand still
Foi uma espera de mais de dez anos. Desde a turnê de "Roll the Bones" (1991) que os brasileiros aguardam ansiosamente a vinda do Rush. Aconteceu, finalmente, no estádio do Morumbi, em São Paulo, sexta-feira passada. Com o estouro do dólar, a conseqüente alta dos cachês, havia-se até perdido a prática de assistir a grandes shows de rock. Como é que era mesmo? Arredores: hordas de fãs; barracas de cachorro-quente; ambulantes; cambistas. Entrada: filas; má-sinalização; revistas; desencontros. Saída: multidão escoando (lenta); novos desencontros; alguns apertos; muito empurra-empurra. Tudo normal, não fosse a chuva. Realmente, não tem jeito: uma hora a idade bate... O trio canadense não deu mole, começou pontualmente e abriu logo com "Tom Sawyer". A emoção foi tanta que a platéia emudeceu e só foi cantar a partir da segunda estrofe. As viradas, os solos, as quebradas, os efeitos - estavam todos lá, inacreditáveis. E permaneceriam assim, ao longo do show. Ao contrário do que acontece com os artistas viciados na indústria, o novo disco não iria atrapalhar a performance. De "Vapor Trails" (2002) e seu som nebuloso, o Rush só tocaria "One Little Victory", "Earthshine", "Ghost Rider" e "Secret Touch". O resto nasceria da mistura de "Different Stages" (1998, o último "ao vivo") com clássicos e coisas-do-fundo-do-baú. "By-Tor and the Snow Dog" e "Working Man", para fechar, seriam um exemplo de relíquia. Já "YYZ", "The Trees", "Spirit of Radio" e "Closer To The Heart", uma espécie de tradição revisitada. A pirotecnia compareceria luminosa, a cada atração: caveiras-cantantes; dragões cospe-fogo; baquetas-giratórias (em close). Neil Peart tiraria o fôlego de todos com "2112", "Leave That Thing Alone" e "The Rhythm Method". Geddy Lee, com "Resist" (acústica), "Limelight" e "Big Money". Alex Lifeson, com "Bravado", "Freewill" e "La Villa Strangiato". Vinte e nove números depois, o País do Carnaval iria a nocaute. Enquanto o Canadá permaneceria afinado, preciso e saltitante...
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>>> Rush
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Teatro
>>> Não sou neurótica, sou ligada
Heloísa Périssé e Ingrid Guimarães estão fazendo "Cócegas" em São Paulo, já há algumas semanas. Pelo visto, para elas, nem o céu é mais o limite. Tom Brasil abarrotado. Duas sessões aos sábados e aos domingos (contando a versão infantil, "Cosquinhas"). Capa da Veja em São Paulo (sonho de consumo de dez entre dez paulistanos). Elogio de crítica (não só Nelson Motta, mas também Barbara Heliodora). Enfim. O que mais "Cócegas" poderia almejar? Semanal na Globo? Aposto que vem já já. Mas, afinal de contas: o que há de novo no front? Talvez não haja nada. De muito novo. As referências estão em toda a parte. Heloísa e Ingrid descendem do humor escrachado, vulgo "besteirol", da televisão e do teatro. Asdrúbal Trouxe o Trombone, TV Pirata, Cinco Vezes Comédia, Os Normais. De algum desses, todo mundo já ouviu falar. Evandro Mesquita, Regina Casé, Luís Fernando Guimarães. Fernanda Torres, Debora Bloch, Pedro Cardoso. São os "pais espirituais" das duas atrizes, veteranas. Estão em cada careta, em cada gesto exagerado. Em cada tipo representativo, em cada fala empostada. O espetáculo, no entanto, é feminista. No bom e no mau sentido. No bom, pois tira sarro da pseudo-independência feminina (que nos custou e nos custa tão caro). E no mau, porque pinta um retrato triste da mulher brasileira moderna. Desde a adolescente com cérebro de minhoca até a solteirona encalhada. Desde a modelete da última estação até a evangélica dos programas de auditório. A conclusão é que o mar não está para peixe. (Pra peixa, então... nem se fale.) Rimos e ficamos preocupados. Há também os palavrões, claro. Fartos. E as ofensas aos homens, coitados. (Não vejo, não ouço, não falo - autômatos totais e irremediáveis). Um prato cheio para antropólogos, sociólogos, psicólogos. E para quem quer rir fácil. Extremamente fácil. Mas elas merecem os frutos que estão colhendo agora. São efetivamente talentosas. Escrevem num português razoável. São grandes observadoras. Com a consagração, espera-se, no entanto, voltem ao drama. Mais cedo ou mais tarde, a seriedade cobra, do humor, maturidade.
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>>> Cócegas - Tom Brasil - Rua Olimpíadas, 66 - Tel.: 3845-2326
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Literatura
>>> Novelas exemplares
É certo que a literatura brasileira já foi mais prestigiada. Até pelos leitores. Ainda assim, temos hoje dois dos maiores contistas da língua, na ativa, e às vezes nos esquecemos de lembrar. São eles: Rubem Fonseca e Dalton Trevisan. Ambos de 1925, ambos com um livro lançado em 2002. O primeiro, em abril, com "Pequenas Criaturas" (pela Companhia das Letras). O segundo agora, em novembro, com "Pico na Veia" (pela editora Record). É sintomático que dois mestres do estilo tenham se empenhado em desenvolver a forma curta, muitas vezes, curtíssima. Parece a mais apropriada a este nosso tempo de breves, leves e parcas leituras. Não consta, porém, que vendam quantidades industriais. E nem que se importem com isso. "Nem a alavanca de Arquimedes para deslocar a inércia do meu mundinho", afirma Dalton Trevisan, no fragmento de número 196. São mais de 200, em "Pico na Veia", um volume de 239 páginas. O que dá quase um fragmento (ou "conto") por página. A concisão atômica lhe permitiu um percurso único, considerado admirável por muitos cultores do idioma. Como Paulo Francis, que planejava uma obra inspirada pela pena microscópica de Dalton Trevisan. "Um bom conto é pico certeiro na veia." (fragmento 2), com o qual o autor justifica seu título. A cidade em que reside, recluso, aparece como a primeira de suas obsessões: "Curitiba - essa grande favela do primeiro mundo" (#18), "Curitiba é uma boa cidade se você for a barata leprosa e pálida de medo." (# 65). Também o amor e os amantes: "- Nunca tomei um copo d'água sem dar metade pra ela, que no fim me traiu." (#186), "Para ele o rico pastelzinho. Para ela o cheiro de fritura no cabelo." (#82). Para completar, os clássicos: "Ao ler a traição de Capitolina, geme a santíssima Carolina: - Ai, Machadinho. Que dirão as minhas amigas no chá das cinco?" (# 62), "Melhora muito o convívio de Sócrates e Xantipa assim que um deles bebe cicuta." (#147). E, claro, narrativas de duas, três páginas. Interessantíssimas. No fim, palavras por ele preferidas: óculo, minzinha, bobice, tipinha. Uma lição de estilo. Sem ser, necessariamente, o último bilhete do suicida (#204 e #205).
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>>> Pico na Veia - Dalton Trevisan - Editora Record - 239 págs.
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Cinema
>>> Algo em común
Está provavelmente havendo um renascimento do cinema na América Latina. Além do Brasil, que se acompanha mais de perto, exemplos de boa cinematografia também chegam da Argentina e do México (para ficar, apenas, nos maiores expoentes). Para que se tenha uma idéia, e para quem perdeu o impagável "Nove Rainhas" (2000), está neste momento em cartaz "O Filho da Noiva" ("El Hijo de la Novia", 2001). Ainda que uma parceria com o cinema espanhol, confirma nossa tese alvissareira, ao contar, mais uma vez, com o magnífico ator Ricardo Darín (um dos protagonistas de "Nove Rainhas"). Ricardo, ou melhor, "Rafael" é proprietário de um restaurante familiar em Buenos Aires, cercado por fornecedores, credores, clientes, um pai aposentado, uma namorada jovem, uma filha adolescente e uma ex-mulher histérica. Infarta, é claro - e resolve mudar de vida. Até aí o velho clichê da crise, que muda tudo e que fornece uma "nova perspectiva". Lógico, a história já foi contada mil vezes - mas não na Argentina de agora, não nesta nossa época, não "do nosso jeito". Esse é o grande mérito de Juan Jose Campanella, diretor e roteirista: assistimos a um cinema contemporâneo, sobre problemas contemporâneos, com pessoas contemporâneas, que vemos nas ruas. (Ainda que isso não seja, exatamente, o Brasil.) E o melhor de tudo: sem apelar para sexo, violência e miséria - ou seja, os velhos "choques de realidade" de sempre. "O Filho da Noiva" é um filme sobre a sensibilidade humana, sobre o idealismo, sobre o sonho tolo de felicidade. Mas e daí? Por isso mesmo, um filme sobre seres humanos, para seres humanos, pelos seres humanos. Coisa rara hoje em dia. A América Latina deve ser mais que a impositiva pecha terceiro-mundista.
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>>> El Hijo de la Novia
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Julio Daio Borges
Editor
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necessariamente a opinião do site
COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
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5/6/2003
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21h09min
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Caro Julio Daio Borges:
Escrevo porque acabo de ler teus comentários sobre meu mais recente livro e admito que foi a crítica mais lúcida que tive.
Depois, você tem toda a razão, eu estava mais interessado em devorar a "feijoada" de amigos do que preocupado com a fatal indigestão de tanta gente misturada na mesma panela.
Influência, certamente, do guru Darcy Ribeiro, o papa da miscigenação. Eu pretendia isso mesmo, um livro mulato de afetos. E considero tua análise mais um desses afagos de quem gosta de ler o bem escrito.
Abraços cordiais,
Caique Botkay
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9/6/2005
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18h35min
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muito bom, muito legal, adorei mesmo, e fico contente que saibam ver o mundo...
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