Digestivo nº 114 | Julio Daio Borges | Digestivo Cultural

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DIGESTIVOS

Quarta-feira, 1/1/2003
Digestivo nº 114
Julio Daio Borges
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+ 1 Comentário(s)




Internet >>> Internet em 2002
A internet passou 2002 inteiro sem ter sido levada a sério. As notícias que chegaram (e ainda chegam) a seu respeito se restringem ao caráter adolescente, vicioso e até mórbido da Grande Rede. Em 2002, os cadernos de "Informática" (os únicos que restaram) se mobilizaram em torno das mortes ocorridas na Coréia do Sul, por inanição: dois jovens que passaram dias jogando on-line. É assim que se vê, infelizmente, a internet no Brasil. Ou então como um "poço dos desejos", em que pessoas marcam encontros às escuras, depois culpam o meio pelo fracasso na relação. Então a Veja descobre e revela à classe média a internet, que já existe há pelo menos cinco anos no País. Claro, ainda há pesquisadores sérios, mesmo no Brasil, estudando a Web e as mudanças de comportamento que se seguem. Como Alice Sampaio, que escreveu "Amor na Internet", um livro que lhe consumiu dois anos, divertidíssimo, mas que foi virtualmente descartado. Nesse contexto, o jornalismo feito em internet ainda sofre de preconceito e, algumas vezes, já ameaçou acabar. Foi-se o tempo em que se acreditava na internet como substituta do jornal. Mas se a imprensa vive hoje na corda bamba financeira, não era de se esperar (dela) outro comportamento: autodefesa e autopreservação. O mais grave, contudo, é que a própria internet não se leva a sério e está cedendo às pressões para se transformar num circo a céu aberto, num hospício sem limites. Em 2002, muita gente boa preferiu ser "clown", rendendo-se à piadinha e ao trabalho de superfície - em vez de arregaçar as mangas e produzir algo consistente e profundo. E tivemos a explosão dos blogs. Quer queira quer não, a forma mais comodista de abdicar de qualquer responsabilidade, de qualquer compromisso, parasitando a grande mídia e ainda por cima falando do próprio umbigo. É o individualismo, que não admite mediação, trocas ou relacionamentos - encarcerando o sujeito na cela da imaturidade adolescente. Não é à toa que a internet concentra, por pixel quadrado, o maior número de revoltados-da-boca-pra-fora. Muita gente ainda prefere vociferar na WWW a enfrentar a dura realidade do "mundo real". Universos são concebidos e ideais são traçados sem a menor conexão com o que há do lado de fora. A conclusão é a mesma de sempre: espera-se que a inteligência, derrotada e à míngua, não abandone a internet como abandonou há muito a televisão. [Comente esta Nota]
>>> Mais Internet
 



Artes >>> Artes em 2002
As artes estiveram em toda parte em 2002. Espalhadas, como devem ser. Este ano foi de Bienal (a 25ª) e, portanto, de controvérsia. Todo mundo já esqueceu do tema ("Iconografias Metropolitanas"), mas ainda assim lembra da obra pirata, lá deixada por um jornalista (e não percebida pela organização), e também do episódio envolvendo o curador, Alfons Hug, que tentou inutilmente recolher as bolas de uma instalação, apenas porque visitantes ameaçavam chutá-las. Piadas à parte, 2002 foi um ano pródigo em arte moderna, graças ao incansável trabalho do Mam. Antes de qualquer coisa, pela mostra conjunta, Cisneros e Nemirovsky, desencravando Volpis, Portinaris e Di Cavalcantis. E onde as benfeitoras, Patrícia, Paulina e Milu Vilela reinaram absolutas. A contemporaneidade se fez presente na exposição "Além dos Pré-conceitos", da curadora tcheca Milena Kalinovska; e a fotografia, num painel, a partir do acervo do próprio Mam. No embalo dos bons fluidos, estendeu inclusive suas atividades até a música e lançou o CD "Cafémamsp", comungando com o lounge de Fernanda Porto. Para os fazedores, e não só para os apreciadores, de arte, a cidade ofereceu o novo espaço "Pintar!", uma iniciativa louvável na formação e no suporte de novos e velhos artistas. Enriquecendo ainda o universo de referências, a José Olympio editou, em 2002, pelo menos três livros que merecem destaque: a "Viagem ao Rio", de Manet; o "Rembrandt", de Jean Genet; e a "Arquitetura", de Lucio Costa. Paulo Mendes da Rocha, um dos nossos mais eminentes arquitetos, foi ao Roda Viva da TV Cultura, mas acabou prejudicado pela reluzente bancada de entrevistadores. Aldemir Martins, octogenário neste ano, emprestou seu brilho à Nova Galeria André, que foi tomada de gatos. E, internacionalmente, um dos pontos altos foi, sem dúvida, a exposição labiríntica sobre a Praga de Kafka, que, além de escrever (divinamente), também desenhou (nem tanto). Se o que se produz hoje, em termos artísticos, está longe de ser largamente aceito e apreciado, ainda resta, como alternativa, a fruição de outros períodos - e essas iniciativas, mal ou bem, vem realizando esse trabalho. [Comente esta Nota]
>>> Mais Artes
 



Teatro >>> Teatro em 2002
O teatro brasileiro parece sofrer de alguns cacoetes. Em 2002, deu bem para perceber. Em primeiro lugar, o da atriz global (ou antes: modelo) que quer provar seu "talento" no palco. Como se precisasse repetir o chavão: "Eu não sou mais um rosto bonitinho, mais um corpo turbinado por plásticas, mais um sucesso de uma novela só." Nessa categoria entrou, vamos ser francos, Carolina Ferraz, com seu "Selvagem como o vento", em que gritou e esperneou, sob a batuta de Denise Stoklos, até que foi interpelada pela platéia, ultrajada, numa memorável seção. Também foi o caso de Maria Fernanda Cândido, a Madalena arrependida de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". Embora a maioria fosse mesmo para contemplá-la na transparência de uma meia dúzia de véus, todos concordam que ela ficou muito melhor anunciando telefone na televisão. Mas malhado mesmo foi o ator Eriberto Leão, namorado da Tiazinha. E por nada mais nada menos que Gianni Ratto, o lendário encenador: "Dizem que um idiota aí, para representar Jesus Cristo, fez até musculação", disparou em Carta Capital. Claro, há outros globais que trabalham sério e com afinco, como Eduardo Moscovis (o Du), par constante de Ana Lúcia Torre, em, por exemplo, "Norma". Mas aí entra o segundo cacoete do teatro nacional, que afeta o nosso cinema também. Trata-se da necessidade imperiosa de "chocar". Ou, no linguajar dos divulgadores, provocar "desconforto" no espectador. Não, não é com sexo ou com mulher pelada. Não mais. Agora a coisa se dá através de temas "proibidos" ou reviravoltas "inesperadas". Moscovis, em "Norma", por exemplo, revela que é gay e parte para cima de Ana Lúcia Torre, na base do "Sou, sim, e daí?". Como se por um momento os eternos oprimidos se transformassem em vingativos opressores, invertendo tudo e saltando para cima da moral do público pagante (se é que ainda lhe resta alguma). Já na linha "enigmática" (embora não seja teatro daqui), tivemos "O Monta-cargas", de Harold Pinter, na luxuosa sala do Centro Brasileiro Britânico. Mas, voltando: um terceiro cacoete seria o do besteirol - sem dúvida, o pior legado do humor tido como "renovador", nos anos 80, o mesmo que viciou a platéia no que há de mais rasteiro e chulo. Dessa doença, padeceram "Três Homens Baixos" e, em menor grau, "Cócegas" (que também padece um pouco do primeiro cacoete, o da afirmação global). Claro, existem outros movimentos de valor, como a Mostra do Cemitério de Automóveis, de Mário Bortolotto, os espetáculos do Ágora, de Celso Frateschi e Jairo Matos, as iniciativas do TBC, de Gabriel Vilela, e até algumas montagens internacionais que, de vez em quando, aportam. No geral, contudo, o teatro anda muito umbigocêntrico, e "de mal" com o público. Que em 2003 ele pense mais no tempo e na paciência de quem, literalmente, paga pra ver. [Comente esta Nota]
>>> Mais Teatro
 



Além do Mais >>> Além do Mais em 2002
2002 foi ano de Copa do Mundo e de Eleição. Quase só isso. Tirando o Carnaval (que tem todo ano), 2002 praticamente parou o Brasil. Tanto quanto cordiais, os brasileiros são festivos e mais agarrados a um feriado do que ao trabalho. Está bem, talvez seja impressão. Mas tente pedir alguma coisa (um produto ou serviço) na sexta-feira: só vai recebê-lo ― se é que vai ser atendido ― na próxima segunda-feira. Não são poucos os estabelecimentos que só começam a funcionar, direito, a partir das 10 horas da manhã; fazem almoço de uma e meia, duas horas, e quando é cinco da tarde já estão juntando as coisas para, às seis, fechar as portas. Não é má vontade, nem preconceito ― é a experiência de quem lida com a nossa indústria de bens e serviços. Talvez seja por isso que no Brasil só prospera quem mexe com "indústria de base" ― o resto é considerado supérfluo, e não só aqui mas em qualquer país em desenvolvimento. A cultura então nem se fala. Os brasileiros não precisam de "cultura" para viver ― até porque não é essa a sua função ―, portanto, não pagam por ela e não acham que ela "vale". Oscar Wilde dizia que toda arte é inútil. Ou seja: não tem uma "finalidade" específica, que se possa precisar. Por que você, por exemplo, ouve música? Ela não faz o seu trabalho, ela não resolve os seus problemas, ela não paga as suas contas, mas você, ainda assim, continuam escutando ― mesmo sem saber muito bem por quê. O pensamento para a "cultura" deveria ser o mesmo ― mas não é. Talvez porque no Brasil haja ainda muito embusteiro, cantando música que não é música, escrevendo livros que não são livros, pintando quadros que não são quadros. Qual a solução? Deixar tudo isso de lado, afinal não "vale a pena"? Errado, vamos ter de inverter esse fluxo ― e mostrar o que é verdadeira música, o que é verdadeira literatura, o que é verdadeira arte. Com uma classe mais educada de pessoas, talvez consigamos mudar o panorama. O que acontece, ainda, infelizmente é que as pessoas "com condições" estão consumindo o mesmo lixo cultural que as pessoas "sem condições". E o Brasil que um dia teve ambiente para o surgimento de um Machado de Assis, de um Villa-Lobos, de um Glauber Rocha, agora vai se contentando com um Paulo Coelho, uma Xuxa, um Tchan. O Brasil ainda produz, obviamente, grandes coisas. É, portanto, responsabilidade de cada brasileiro valorizar a verdadeira cultura ― para depois não reclamar e lavar as mãos como Pôncio Pilatos. [Comente esta Nota]
>>> Mais Além do Mais
 



Televisão >>> Televisão em 2002
Depois de mais de 50 anos, o Brasil parece não ter ainda encontrado uma utilidade para a televisão. Em 2002, não foi diferente. Passamos o ano sob a constante ameaça dos reality shows, que no primeiro semestre haviam perdido o fôlego, mas que no segundo retornaram com força total. A inteligência na televisão parece mesmo eternamente restrita a algumas ilhas. A alguns programas das emissoras não abertamente comerciais. Como o "Umas Palavras", de Bia Corrêa do Lado. Ou como o irregular "Roda Vida", da TV Cultura. O que ocorre, infelizmente, é que os inteligentes desistiram de salvar o veículo da desgraça à qual está condenado. Os exemplos de resistência estóica são, além dos citados, o persistente "Manhattan Connection" (agora com Lúcia Guimarães e Arnaldo Jabor) e, digam o que disserem, o "Saia Justa", comandado por Mônica Waldvogel. Procuram ambos um equilíbrio entre o histrionismo (na tevê, necessário) e uma mínima seriedade (também necessária, mas considerada dispensável em 90% dos casos). Conclusão: a tevê a cabo, apesar de todas os prejuízos causados, ainda é a tábua de salvação à qual o espectador tem de se agarrar. É lá que estão alguns dos melhores filmes, algumas das melhores séries, o pouco humor que não descamba para o besteirol e os documentários (tratados como "chatos", mas ilustrativos de fato). Não existe cenário possível para a televisão em 2003, porque as intenções de seus executivos e diretores oscilam mais que os fluxos de capital na bolsa de valores, em época de flutuação do dólar. Sem considerar que, mesmo economicamente, o maior modelo de tevê no Brasil, a TV Globo, cambaleia a ponto de se fazer vassala da politicagem, em busca de ajuda ($). Lamentavelmente, as alternativas (de massa) à Vênus Platinada são ainda mais escabrosas. Não é preciso citar nomes. Enfim. Que em 2003 se tenha piedade dos telespectadores desamparados. [Comente esta Nota]
>>> Mais Televisão
 

 
Julio Daio Borges
Editor
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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
5/1/2003
13h16min
O jornalismo internético afirmar-se-á pela competência de seus atores em desenvolver conteúdo de qualidade para um público claramente identificado e educado para o uso deste novo meio. Quanto a questão de qualidade do produto, o Julio disse tudo: é preciso resistir à tentação do trabalho superficial, apressado, fácil. No que se refere à audiência da internet, lembro a necessidade de se investir em pesquisa para conhecê-lo melhor e em táticas promocionais coerentes com o seu comportamento.
[Leia outros Comentários de Héber Sales]

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