Digestivo nº 134 | Julio Daio Borges | Digestivo Cultural

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DIGESTIVOS

Quarta-feira, 21/5/2003
Digestivo nº 134
Julio Daio Borges
+ de 2900 Acessos
+ 2 Comentário(s)




Imprensa >>> Só os profetas enxergam o óbvio
A “Carta Capital”, como era de se esperar, dedica a sua capa desta semana a Raymundo Faoro. Afinal, Mino Carta tem sido, há muito tempo (desde 1977, pelo menos), um de seus admiradores mais fervorosos. É pena porém que, mesmo no seu semanário, as homenagens tenham se limitado a citar, merecidamente, “Os Donos do Poder – Formação do Patronato Político Brasileiro” (1958) e “Machado de Assis, a Pirâmide e o Trapézio” (1974). Como alguns dos grandes intérpretes do Brasil que se meteram na seara jornalística, Faoro decantava também sua opinião nas páginas dos periódicos. A revista se dedica a selecionar alguns trechos de seu jornalismo para reforçar o tal lado “profético” (o preferido de Mino Carta). Pena igualmente que Faoro, na imprensa, não tenha sido mais ouvido: parece que foi mais fácil manter o autor de obras fundadoras em seu pedestal do que enfrentar a voz incômoda do articulista. Mas Faoro errou também, como naturalmente erram todos os que se dedicam a encarar os oráculos diariamente ou mesmo semanalmente. Festejado adesista de Lula em 2002 (embora tenha rejeitado a vice-presidência na campanha de 1989), dificilmente faria vista grossa para o dito “neo-conservadorismo” do Governo (como o PFL prefere chamar a atual atitude do Presidente e de seu partido) perante os juros, a tributação e as reformas. Aliás, os apoiadores de outrora – que ainda não se calaram em definitivo – vão ter de se posicionar sobre o fato do “medo” ter solenemente engessado a “esperança”, nestes primeiros meses de mandato. Situação tão ou mais delicada do que o último “faux pas” de Fidel Castro. Nós, brasileiros, finalmente assistimos à diluição da direita e da esquerda na fogueira das vaidades de Brasília, embora as viúvas de 68 prefiram tapar os olhos e entoar hinos fora de moda. Nosso muro de Berlim enfim caiu; nossa União Soviética enfim se desmantelou – apesar de um pouco tarde. Faoro teria de engolir o Lula-de-barba-branca, mesmo tendo votado no Lula-de-barba-preta, como sabiamente colocou Luis Fernando Verissimo na semana passada. Talvez devêssemos abandonar o “choque de realidade” de Carandirus e similares e encarar mais seriamente as páginas de política dos jornais. É lá que acontece o grande embate da nossa História recente. Com isso, aliás, Raymundo Faoro teria concordado. [Comente esta Nota]
>>> E que diria o Profeta? | Interpretando a barba | E agora, José?
 



Música >>> Na onda da maré cheia
Quem é que vive mais: o ladrão besta ou o sabido? O besta morre logo e o sabido é garantido. Assim cantam Caju & Castanha, ou Cajuzinho & Castanha, desde que o Caju original faleceu (2001). Estamos falando da dupla de “emboladores de coco”, que deu primeiramente as caras nos anos 70, em Pernambuco, e que lança o seu segundo disco pela Trama (16º da carreira), em São Paulo. Embora sejam figurinhas fáceis nos mercados do norte e nordeste do Brasil, os repentistas (como são majoritariamente conhecidos) ficaram restritos a praças ou ao centro da cidade, no sul e sudeste, onde são geralmente apontados como atração pitoresca. Numa época, porém, em que a palavra perdeu aquela importância que já teve (para a MPB), revelam uma habilidade fora do comum em estruturar rimas, e uma argúcia contagiante em desencadear temas. No CD, “Professor de Embolada”, destacam-se inegavelmente as hilariantes “O ladrão besta e o sabido” (op. cit.), “A mulher feia e a mulher bonita” (um hino machista?), “O pobre e o rico” (uma preocupação social?), e “O poder que a bunda tem”, fechando o álbum. Na última, para que se tenha uma idéia, enumeram as vantagens da “mulher sereia” sobre a “mulher batida”, da “mulher de bunda cheia” frente ao “pau vestido” (mulher que “de bunda só tem [mesmo] a lasca”). Segundo eles, todos querem “pegar no volume da fartura”, “montar na garupa” ou então possuir uma “bunda exata”. Alguém vai falar em preferência nacional, mas é capaz que a composição seja de antes das propagandas de cerveja. Quem assina é Mestre Azulão, mas não encontramos o ano. Aliás, uma falha do encarte é não prover o ouvinte com as letras transcritas – a primeira ou a segunda maior riqueza, no disco, depois da interpretação. Caju & Castanha, no entanto, não são compositores (ou quase não são; as exceções ficam por conta de “História e Glória” e “Santa Cruz X Sport”). Entre os autores, reinam Pinto e Rouxinol. Mas também Lenine e Bráulio Tavares: sua “Lavadeira do rio” ganhou nova e interessante roupagem. Há que se ver quão receptivo se revela o público daqui a essas tradições (de lá), mas o preço é estimulante e uma audição antes não custa nada. [Comente esta Nota]
>>> Professor de Embolada - Caju & Castanha - Trama
 



Cinema >>> Speak, Memory
Estamos na época dos documentários. Entre os brasileiros, o mais novo “darling” da crítica é o “Nelson Freire” de João Moreira Salles. A consagração foi unânime e as platéias têm aplaudido de pé. É a vingança dos tímidos introvertidos: o diretor conseguiu extrair duas horas de performances e depoimentos de um dos pianistas mais verbalmente lacônicos de toda a História. Freire praticamente não completa nenhuma frase e – conforme o jargão – “deixa que a música fale por ele”. Não admira que fuja das entrevistas; e nem que tenha sido, na infância, um menino solitário. Com pouca idade, já garoto prodígio, “tinha o seu mundo” – no bonito dizer de uma professora. Aliás, quando o “narrador” entra, o espectador consegue encaixar algumas peças no lugar – em outras ocasiões, não. Os trechos estão embaralhados (propositalmente?) e não se sabe o que é “antes” e o que é “depois” no filme. O protagonista tampouco esclarece algumas dúvidas sobre suas ligações pessoais. Por exemplo: – O que é Martha Argerich para ele? (Uma amiga? Uma ex-amante? Uma namorada?) Claro: tudo isso desaparece diante da música – mas um pouco mais de cuidado com a cronologia e com o público médio não seria pedir demais. São muitas as reticências e muitos os subentendidos, e o leigo não tem obrigação de preenchê-los com as respostas corretas. Então o realizador se enfeza e proclama: – Não é para todo mundo. Azar de todo mundo. (Etc.) Em termos. É interessante, porém, observar como alguns sujeitos, metidos a entendidos, saem da sala com aquela cara de ter captado absolutamente tudo. Coisas de que nem um “connaisseur” daria conta. É a sina de quem freqüenta essas cadeias metidas a exibir obras-de-arte. Nélson Rodrigues (sempre ele) gostava de provocar os intelectuais que não leram nenhum livro: os cinéfilos. (Aquele tipo que sai da sessão mais “lido”.) Mas voltando a “Nelson Freire”, algumas das melhores passagens são as cômicas. Muitas evidenciando a falta de jeito do pianista, ao lidar com o que chama de “star system”, ou, por vezes, com o seu próprio instrumento. Entre as peças, fica-se com a sua temporada ao lado de Rachmaninoff, na Rússia. Não há dúvida de que Freire foi um dos maiores do século (XX), mas talvez por isso mesmo merecesse ser mais “espremido”, mais pesquisado e mais elaborado, ao menos para a posteridade. [Comente esta Nota]
>>> João Moreira Salles filma o Brasil delicado em Nelson Freire
 
>>> MAU HUMOR

“A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuição maior do que tudo que a África nos deu até hoje.” (Paulo Francis)

* do livro Mau humor: uma antologia definitiva de frases venenosas, com tradução e organização de Ruy Castro (autorizado)
 
Julio Daio Borges
Editor
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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
20/5/2003
15h10min
“A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuição maior do que tudo que a África nos deu até hoje.” (Paulo Francis, que era ótimo da cabeça, mas doente do pé)
[Leia outros Comentários de Sérgio de Oliveira]
27/5/2003
10h18min
Como o próprio João Moreira Salles afirma, o objetivo do filme não é jornalístico nem biográfico, portanto não há nada para ser preenchido, muito menos “respostas corretas” (?). O filme não é para todo mundo mesmo. Mas, ao contrário do que se insinua, o público alvo não são os famigerados pseudo-intelectuais ou “connaisseurs”, e sim aqueles – privilegiados – a quem a música clássica faz sentido real. Esses, capazes de vislumbrar o gênio da interpretação (e, através dele, os inúmeros gênios da criação), têm todo o direito de “sair da sala com a cara de ter captado absolutamente tudo”. Por fim, tenho certeza de que, ao se referir à “temporada ao lado de Rachmaninoff”, a crítica utilizou um “subentendido”, uma vez que o compositor russo morreu em 1943, um ano antes do nascimento de Nelson Freire.
[Leia outros Comentários de Mauricio Negro]

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