Digestivo nº 408 >>>
Que pena que vamos ter de desfazer a imagem de Walter Salles em Diários de Motocicleta, trocando seu Che "Gael" Guevara — mesmo que idílico — por motoqueiros de bem menor estirpe... O cinema brasileiro, infelizmente, vem se perdendo na "realidade", no seu desejo, impossível, de refleti-la e de converter-se em instrumento de "conscientização" (ainda hoje), para "transformar" a sociedade... Motoboys, candidatos a Ronaldinhos e crentes de igrejas evangélicas não viram o filme e nem irão vê-lo. Já "as elites" — apesar de ter essa opção — dificilmente vão "se sensibilizar" com um longa que, na melhor das hipóteses, incita a luta de classes, ensina a técnica do assalto sobre rodas e celebra a ética do mundo cão (condenando os personagens ao absurdo generalizado). Desde Cidade de Deus — um filme importante — vem prevalecendo, mais uma vez, a sociologia sobre a arte e o cinema se vale do panfletário, a fim de combater a indústria, mas termina nem tocando a realidade dos que procura retratar, nem despertando os bons sentimentos dos que poderiam melhorar esse quadro... Claro que a França vai premiar, desde o "exotismo" dos romances de Jorge Amado, que fascinaram os existencialistas, eles esperam que nós não tenhamos mudado muito, na nossa selvageria, na nossa violência (até amorosa), na nossa incurável barbárie. Walter Salles — talvez não querendo repetir a história do "Pixote", que, da realidade, o cinema não salvou — sente que tem uma dívida com Vinícius de Oliveira, o mesmo de Central do Brasil, e aí está ele, preso ao mito de que só o futebol salva... Depois que Lula chegou ao poder, não precisamos mais de uma elite com complexo de culpa, tentando reverter as mazelas sociais em tela grande. Elite, se assim o for, serve para pensar as grandes questões, para compor as grandes obras, para dar os saltos que os demais, justamente, não podem. Chega de fazer cinema sobre (e para) quem nem ao cinema vai.
>>> Linha de Passe
Eu penso que as coisas não são como escreve o Julio Borges. Parece-me que uma das propostas do cinema é pensar e refletir a vida. Se falar sobre as mazelas das múltiplas figuras dos pobres é o nosso sintoma, é necessário que assumamos, a fim de descobrir as possíveis causas dos problemas. De modo algum vi ali possíveis culpados ou uma incitação à uma luta de classes. Penso que ela exista (talvez não a luta, mas uma grande tensão entre elas). O que não podemos é deixar de pensar os problemas relevantes à nossa soeciedade que Walter sabe fazer, com o seu toque de lirismo e pessimismo. O cinema não nos trará solução dos nossos problemas. Mas creio que ele pode nos ajudar a entender as engrenagens da mesma lógica. Infiro portanto que devemos, sim, fazer filmes sobre pobres, ainda que eles não o assistam. Eles tem os seus limites. Ou o que Julio sugere? O retorno às chanchadas, ou ainda a primazia do "Se eu fosse you"? Prefiro ficar com o mundo cão de Walter.
Se a tese apresentada no artigo fosse levada a sério, grandes obras-primas do cinema, como "Central do Brasil", do mesmo Walter Salles, da literatura; como "Vidas Secas", de Graciliano Ramos; da pintura, como "Os Retirantes", de Portinari não teriam sido realizadas. Walter Salles e Daniela Thomas acertaram a mão ao nos brindar com um filme que denuncia os absurdos de nossa dura realidade, mas que também tem valor enquanto entretenimento. Embora, por si só, a arte não tenha um papel transformador, tem a importante função de revelar ambientes muitas vezes desconhecidos, mas muito próximos de nós.
Os Walter Salles do cinema nacional poderiam falar um pouco das mazelas da classe social deles, né? As mazelas da classe baixa eu já conheço muito bem. Gostei do seu ponto de vista, Julio.