Digestivo nº 419 >>>
"Pode-se dizer com bastante segurança que qualquer artista de alguma dignidade é contra seu país". "Todo homem decente se envergonha do governo sob o qual vive". "O principal conhecimento que se adquire lendo livros é que poucos livros merecem ser lidos". Essas e outras frases estão impregnadas no inconsciente de quem passou os últimas décadas lendo atentamente os melhores jornalistas culturais brasileiros do século XX. Porque todos eles, direta ou indiretamente, foram influenciados por H.L. Mencken. A começar por Paulo Francis, que o tinha como um de seus heróis, junto a Bernard Shaw e Edmund Wilson. Emendando com Ruy Castro que, além de compilar essas frases em suas coletâneas de Mau Humor, organizou a mais célebre edição de Mencken em português - justamente, O Livro dos Insultos, que teve sua primeira tiragem em 1988, com tradução e posfácio de Ruy, mais orelha de... Paulo Francis. O livro sai, agora, com novo projeto gráfico, dentro da coleção Jornalismo Literário da Companhia das Letras. Mencken não é bom filósofo, mas estão lá, igualmente, suas opiniões filosóficas. Não gostava de música popular, mas coincidiu com o nosso Vinicius de Moraes quando afirmou que "a paixão é o mais perigoso de todos os inimigos da suposta civilização" (ambos, na verdade, devem ter bebido em Freud). Admirava, imensamente, Beethoven e imaginava que ele devia ter realizado seu ideal de "artista livre": "o homem que ganha a vida, sem nenhum patrão, fazendo coisas que lhe agradam, e que continuaria fazendo mesmo sem pressões econômicas". Mencken soa hoje mais inteligente e engraçado do que literário e profundo. Mas suas observações, de tão verdadeiras, ficam impregnadas em nós. Quando, por exemplo, diz que o camponês que vem para a cidade precisa se alienar, para não se sentir constantemente esmagado e explorado; ou quando conclui que ninguém está imune às opiniões e aos preconceitos de sua própria mulher; ou, ainda, quando prova que toda autobiografia sincera é uma contradição em termos. Mencken escreveu mais do que deveria, mas merece ser decorado, em muitos de seus trechos, como sugeria seu ídolo Nietzsche.
>>> O Livro dos Insultos
Não consigo conceber a ideia de que alguém governa de verdade, basta olhar qualquer cidade deste país e verás que há um crescente processo de desigualdade. Pensando na capital paulista, observo pessoas que dormem nas ruas, que fazem necessidades físicas nas praças, que comem mal, tomam sopas de instituições privadas ou públicas - que parecem desejar manter o status da desgraça como obra de arte pra prosperidade. Se isso é governar, diria que o sadismo está com o governo, que geralmente é alguem que vive no terno e na gravata, mas se mata de rir da desgraça humana e exerce um governo migalhas, como se todos fossem pássaros. Ou, melhor, corvos. Pura sacanagem.
Outra do Mencken: "Eu bebo pra tornar os outros interessantes". Li o livro na época do seu lançamento - não tenho mais, se perdeu na poeira do tempo, me arrependo de não ter anotado as frases mais interessantes. A meu ver, porém, no texto, essa é a frase que melhor o define: "soa hoje mais inteligente e engraçado do que literário e profundo". Tenho uma certa prevenção com aforismos, sentenças curtas que, fechadas em si mesmas, parecem querer pretensiosamente assumir a condição de verdades absolutas. Como demonstra o próprio Nietzsche, quando escreve essa pérola da arrogância: "O aforismo, a sentença, nos quais pela primeira vez sou mestre entre os alemães, são formas de 'eternidade'; a minha ambição é dizer em dez frases o que outro qualquer diz num livro - ou que o outro qualquer não diz nem em um livro inteiro".