Digestivo nº 473 >>>
Talvez por uma dessas injustiças da História, Gabriel García Márquez foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1982, enquanto Mario Vargas Llosa ficou esperando até agora. Em algum momento do boom latino-americano dos anos 70, eles estavam juntos, vinham de países periféricos — Colômbia e Peru, respectivamente —, lutavam para publicar seus livros e para sobreviver como escritores concomitantemente. Talvez pese o fato de que García Márquez escreveu uma obra-prima, Cem Anos de Solidão (1967), mas Vargas Llosa foi um dos primeiros a reconhecê-la. Tanto que, na edição de 40 anos da Real Academia Española, Vargas Llosa concordou que fosse reproduzido seu ensaio "Cien Años de Soledad. Realidade Total, Novela Total". Reza a lenda que romperam relações quando García Márquez, de tão íntimo que era de Vargas Llosa, foi consolar sua mulher, Patricia, numa crise... De qualquer forma, divergiram em política: García Márquez se fez amigo de Fidel Castro e, lamentavelmente, defensor do regime cubano (até hoje); já Vargas Llosa reavaliou sua posição, mudando de lado e combatendo as ditaduras de esquerda e seus tiranetes (até Chávez). Como a Academia Sueca tem uma certa tradição de premiar autores mais "à esquerda" que "à direita", no telefonema que lhe fizeram comunicando o prêmio, Vargas Llosa confessava não mais esperá-lo, ao ponto da quase indiferença... De 1982 pra cá, não escreveu talvez a redentora obra-prima, embora muita gente considere que já houvesse escrito (Conversa na Catedral, 1969). Alternou-se entre a literatura dita séria (A Guerra do Fim do Mundo, 1981, uma homenagem a Euclides da Cunha), a (semi)biográfica (A Cidade e os Cachorros, 1963; Tia Júlia e o Escrevinhador, 1977; Travessuras da Menina Má, 2006) e a "de entretenimento" (Pantaleão e as Visitadoras, 1973; Elogio da Madrasta, 1988; e Os Cadernos de Dom Rigoberto, 1997). Flertou, ainda, com o jornalismo literário, digamos assim, em A Festa do Bode (2000); e, com a reconstituição histórica, em O Paraíso na Outra Esquina (2003). Esse, talvez, "compromisso com a realidade" afastou Vargas Llosa da fabulação, do que provavelmente fosse o "realismo fantástico", aproximando-o do jornalismo, do ensaísmo e da opinião pública. Logo, esse Nobel de 2010 tem um sabor especial, porque não vai para uma obra-prima da literatura, como possivelmente foi o de 1982, mas vai para o "conjunto da obra". (Sem esquecer que Mario Vargas Llosa foi candidato à Presidência da República do Peru, em 1990.) Desde a ascensão do romance, no século XVIII, sua consagração, no século XIX, e sua sobrevida, no XX, a literatura ficou muito identificada com obras de ficção e o Nobel, a premiação máxima do nosso tempo, seguiu essa tradição. Talvez Vargas Llosa, laureado agora, abra caminho para tantos outros autores identificados com outras modalidades de escrita, como os mesmos jornalismo e ensaísmo. (Quanto ao Brasil não ter sido, novamente, contemplado, o prêmio dirigido a um escritor do Peru só indica que os olhos da Academia Sueca estão cada vez mais perto de nós...)
>>> O peruano Mario Vargas Llosa lembra os curtos mas intensos momentos que viveu antes de ser mundialmente anunciado como vencedor do Prêmio Nobel
Acontece que o BraZil já foi contemplado, sim! Somos tetra. Quase ninguém lembra. Ganhamos com o Zé Lins, o Graciliano, o João Cabral e com o mestre Rosa. Não sei e não lembro se a Clarice...
"Vargas Llosa reavaliou sua posição, mudando de lado e combatendo as ditaduras de esquerda e seus tiranetes (até Chávez)". Pena ele ter "esquecido" de combater também as ditaduras de direita... Creio que até as tenha apoiado. Por isso, fico com García Márquez. Quanto ao Nobel, que valor agregou a "Cem anos de solidão"? Este deixaria de ser um clássico se não tivesse ganhado o prêmio? Será que uma obra de arte precisa mesmo ser premiada? "Grande Sertão: Veredas" é menos importante por não ter ganho um prêmio (Nobel)? Até onde a arte pode/deve ser convertida em mercadoria? São perguntas que não fazemos, mas que carecem cada vez mais de respostas.