Digestivo nº 479 >>>
Por que a autoajuda faz tanto sucesso? (Todo mundo se pergunta...) Porque, apesar de Nietzsche ter matado Deus, todos os homens, em todas as épocas, procuram alguma sabedoria para viver. E, se antes se encontrava abrigo moral nas religiões, hoje estamos procurando "a arte de bem viver"... até na autoajuda! Por isso, igualmente, a filosofia tem feito cada vez mais sucesso. Os filósofos, em sua acepção, sempre foram os "amigos da sabedoria", e o que hoje rejeitamos na religião, por seus dogmas, sua intolerância e seu anacronismo, encontramos na filosofia antes ou depois da filosofia religiosa, ou cristã (às vezes até na filosofia oriental!)... Se você duvida que o interesse pela autoajuda tem raízes na mesma inquietação que suscita uma busca pela filosofia, observe estas frases de Lúcio Sêneca (3 a.C.—65 d.C, um dos maiores nomes do estoicismo imperial romano): "Regremos nossas contas com a vida, dia a dia" e "Não posso dizer que não perco nada, mas poderei dizer o que perco, por que e como" ― poderiam ou não poderiam figurar num manual de "finanças pessoais"? Já: "Quanto tempo serei, não me pertence. Pertence-me o que serei, enquanto for" e "O essencial não é viver por muito tempo, mas viver plenamente" ― poderiam ou não se encaixar num manual de "administração do tempo"??? Claro que Sêneca é muito mais do que sonha a nossa vã autoajuda (tupiniquim). Não estimula, por exemplo, o enriquecimento: "Saibam que as melhores coisas pertencem a todos". Nem o consumo: "O fato de não mais se desejar o prazer talvez seja o prazer supremo". Não acredita nas buscas espirituais em outros continentes: "Para onde quer que fores, teus vícios te seguirão". Pois: "A arte de viver bem pode ser encontrada em qualquer lugar". Para variar, advoga o equilíbrio (hoje perdido): "Se estás equilibrado, nada te atingirá". E o próprio estoicismo (óbvio!): "Nada te será mais eficaz que a confiança em ti e o firme propósito de suportar tudo". Também a independência: "O que desejo para ti é a livre disposição de si mesmo". A liberdade: "Só é livre aquele que vive uma vida plena". E a previdência: "O que pode acontecer a qualquer hora pode ser que aconteça agora". Para concluir, Sêneca encerra (retomando nosso argumento lá do começo): "Queres saber qual é a vida mais longa? Aquela que tem seu termo na sabedoria"... Sobre os enganos do mundo, que compila essas e outras pílulas, a partir das famosas Cartas a Lucílio, pertencem à nova coleção Ideias Vivas, da WMF Martins Fontes. Em menos de 100 páginas, com tradução muito acertada de Gustavo Piqueira, milênios de sabedoria nos contemplam. Ao lado de Sêneca, neste primeiro momento, estão Plutarco (Como distinguir o amigo do bajulador) e Pascal (Diversão e tédio). Portanto, antes de comprar o primeiro mago-letrista, político-religioso ou padre-cantor, consulte as fontes primárias. E não confie em best-sellers, pois já diria o mesmo Sêneca: "O povo é mau conselheiro em tudo e, nesse ponto como em todos os demais, é modelo de inconstância".
>>> Sobre os enganos do mundo
Que bom! Serenidade e estoicismo são aconselháveis em alto grau, principalmente quando se vai envelhecendo e se entende que nossas queridas ilusões sobre as pessoas (mesmo as que mais amamos) e sobre nós mesmos (principalmente) se dissipam irremediavelmente. No entanto, são substituídas por uma capacidade maior de enxergar claro, isto é, com uma desilusão objetiva e tranquila. Aí os ideais de Bem ou Mal enfáticos já não nos pegam mais...