Digestivo nº 221 >>>
Velho de 90 anos resolve transar com uma virgem no dia de seu redondo aniversário. Um enredo aparentemente libidinoso, e até banal numa era de sexo exacerbado, de repente pode se transformar numa pequena obra-prima, quando se trata de um dos maiores escritores da atualidade: Gabriel García Márquez. Embora tenha sido vendido assim, numa época em que os hormônios juvenis decidem tudo, Memoria de mis putas tristes, é uma narrativa sofisticada, finamente elaborada, onde as cenas de sexo, de uma delicadeza ímpar, no todo quase não importam — porque praticamente não ocorrem. O velho em questão encontra sua virgem em menos de 24 horas, mas, ao invés de deflorá-la e descartá-la de sua existência provecta, apaixona-se e passa a amá-la, ainda que, aos 90 anos, a única coisa que possa infringir-lhe na carne sejam algumas massagens nas costas, ao tocar-lhe enquanto dorme e ao enxugar-lhe o persistente suor. As meditações subjacentes sobre a velhice valem por algumas das melhores páginas de Cícero e a trilha sonora, se é que assim podemos chamar as citações aos compositores clássicos, são pura alta cultura — num tempo sufocado pela cultura (e pela música) pop. García Márquez parece enfrentar, menos sutilmente do que se pensa, a agitação e a movimentação contemporâneas, ao retratar uma existência aos nossos olhos vazia, mas, em suas manifestações mínimas, rica em tesouros espirituais. É impressionante que, em um livrinho de 100 páginas, consiga dizer tanto sobre a vida — se, em tratados volumosos de centenas de páginas, nossos intelectuais de hoje se percam, em janelas infinitas, sem atingir um todo inteiro e uniforme (a redundância, aqui, é proposital). É a obrigação de artistas e de pensadores de ontem e de hoje: fornecer uma visão de mundo, mais do que se lançar em interrogações sem rumo. E, nesse ponto, Memoria de mis putas tristes é brilhante. Quem sabe, se os nossos autores lessem, tomassem vergonha na cara e procurassem pretensões mais elevadas — e permanentes. Ou, ao menos, desistissem das suas — deixando os verdadeiros mestres com a primazia no falar, já que o público, perdido entre tantas coisas desimportantes, não os ouve mais.
>>> Memoria de mis putas tristes - Gabriel García Márquez - 109 págs. - Editorial Sudamericana
Brilhante, Julio! Não tinha lido esse texto. Que pena que não fui eu quem escrevi. Adorei. Também acho isso. Como um livro tão pequeno pode conter tantos ensinamentos sobre a vida?? Vc deu uma alfinetada de leve em uns e outros. Finíssimo!!!
Como escreveu Camões: "Mas servira se não fora, para tão longo amor, tão curta a vida! Beijão. Dri
Prezado Julio, sou argentina e leio Gabo na nossa língua espanhola, desde meus 15 anos. Cresci com seus personagens; desde a Cándida Erendira passando pelo coronel, o patriarca, a saga dos Buendia, até o ancião de noventa anos, apaixonado pela ninfeta virgem. Nos meus melhores dias, no vilarejo onde me escondo, costumo mergulhar nos seu mundo e vé-lo através do seu olhar. Grande mestre Gabo! Único na sua espécie! Tua manifestação em relação aos tempos atuais me soa mais do que certeira. Apenas cem páginas, mas uma obra-prima, do grande e felizmente ainda vivo, Gabriel Garcia Marques.