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Quinta-feira,
16/11/2006
Uma feira (in)descritível
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Apesar de escritora, meu fundamento é a imagem. Mesmo a palavra, antes de tudo é para mim, a palavra grafada, concreta, desenho sobre o papel (ou sobre a tela). Visualizo a palavra, em suma, antes de lê-la, o que não quer dizer que dela desvincule o significado: para mim, a palavra-imagem já significa.
Traduzir em palavras um fenômeno como a Feira do Livro de Porto Alegre, significa desenhá-la, portanto e para mim, em palavras. É possível configurar tantos gestos? Tantas cores e percursos? Veremos, ou melhor, verão vocês, que me lêem nesse exato instante: a Feira do Livro de Porto Alegre como nenhuma outra, presta-se a imagens. Porque aqui não se trata somente de literatura, mas de uma festa em torno do livro, consagrado não como mero suporte transverso a um conteúdo abstrato, imaginário, além-mundo; na Feira do Livro de Porto Alegre, o livro é tão objeto quanto o brinquedo barato vendido pelo ambulante, tão maduro quanto o senhor curioso que investiga uma leitura antiga; tão criança quanto aquela que pasmada espia por baixo dos braços da mãe. Borboleta branca que voa perdida entre os quiosques - com ela foi o livro comparado por Mallarmé. A Feira seria um grande livro anímico? Um livro folheado e lido em poucos dias de novembro? É leitura de feriados, de passeios distraídos? De domingo?
Sim, em Porto Alegre.
Não bastasse a chuva roxa, esse atropelo de olhos obcecados, desejosos de encontrar certa obra perdida; esse debate apaixonado e ruidoso que entorta ainda mais esses labirintos da praça de onde menos se espera saem jornalistas, aquele poeta, um travestido - até quem já morreu; mas no meio do formigueiro a gente senta pra tomar um café, onde toda conversa é um paratexto, um prefácio crítico; o chope, até a água mineral tem gosto de celulose - árvores e livros.
Como demonstro: esta feira não é bem e só um espetáculo-vitrine de lançamentos, editores, ou autores de umbigos. Ao lado do best-writer, do autor sensível e obscuro, da sensação cult do momento, autografa o marginal independente, o funcionário público ansioso, crente na genialidade incontestável das suas mal-editadas linhas, a senhora dona-de-casa estreando um conto infantil caseiro ilustrado pela filha mais velha - quase uma moça já. O vento se encarrega de desmanchar as poses mais atraentes, de equalizar os corpos, iguais na mesma celebração. O mesmo vento se encarrega de recobrir o sucesso de ontem com a poeira sebosa e amarelenta dos estoques acumulados. Não tem cenário e iluminação que estanque o suor, que disfarce olheiras exaustas após tantos eventos, tantas brochuras.
A Feira de Porto Alegre é uma festa de quem trabalha no e para o livro, de quem ama o livro, de quem deseja, cultua, produz e - por que não? - vende esse nosso fetiche. Um ritual completo.
Inclui, é claro, sacrifícios: desde o de aprender a tolerar cotovelos e ritmos andares alheios ou de permanecer isolado, imóvel à espera do leitor ausente; desde o de gastar tudo o que ainda nem se tem, esperando que se cumpra uma promessa feita por escrito - a garantia de um paraíso feito de poesia ou ficção -, até o de trabalhar duramente para que tudo aconteça e para que a Feira instale-se na praça tão naturalmente a ponto de confundir-se com os jacarandás floridos.
Esta feira é mais que do Livro, é uma Feira de Leitores e de Escritores que, no fundo, no fundo, não passam de leitores de todo o imaginário futuro. Pois a diferença entre o leitor e o escritor é bem e unicamente essa: o escritor é aquele que lê aquilo que ainda não foi escrito.
Da Paula Mastroberti, artista plástica e escritora (porque era para entrar nos Ensaios, mas não deu o tamanho...!).
Postado por Julio Daio Borges
Em
16/11/2006 às 14h11
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