Há alguns meses, depois de ler quatro livros impactantes, eu não conseguia dar seqüência a uma leitura. Isso fez com que eu atrasasse algumas resenhas de livros, e isso não é nada legal, pode ter certeza.
Mas eis que em um certo domingo eu resolvo ler A secretária de Borges (Record, 2006, 176 págs.), da carioca Lúcia Bettencourt.
O livro de contos, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2005, foi minha salvação, digamos assim. Depois de lê-lo por inteiro naquele domingo mesmo, consegui deixar pra trás a urucubaca que me impedia de ler outros livros.
Mas se por um lado a leitura me foi providencial, por outro me deu uma preocupação. Por conta de o livro não ter me agradado completamente, fiquei com a mesma dúvida que o colega Spalding: escrever ou não uma crítica não muito elogiosa sobre o livro de uma "nova autora"? Resolvi escrever pelo seguinte: a omissão não seria boa nem para mim nem para a autora. Imagino que todo autor leva a sério o que os outros dizem sobre seus livros. Se elogios ou se críticas, não importa. Desde que sejam bem argumentadas e justas, devem ser levadas a sério. Digo isso porque A secretária de Borges é um livro irregular, e poderia ser bem melhor do que é, na minha opinião.
No primeiro conto, que dá título ao livro, Jorge Luis Borges é o narrador-personagem. Ele conta que em determinado momento de sua vida, quando a cegueira já havia se apoderado de seus olhos, sua secretária, que colocava no papel as palavras ditadas pelo escritor argentino, passou a fazer pequenas alterações em seus textos. Mas essas pequenas alterações, a troca de uma determinada palavra por um sinônimo, por exemplo, aumentaram. Ao perceber isso, Borges convoca outra pessoa para reproduzir no papel seus ditados. É quando percebe que a sua secretária era quem dava vida a seus textos, melhorando-os, e ele a chama de volta. Com o tempo, ela se torna uma espécie de ghost-writer. Borges colhe os frutos do sucesso frente ao grande público, enquanto que a secretária se contenta em ser uma reles coadjuvante. Vê-se que é uma ótima história. Talvez seja este colunista querer demais, mas acho que se o conto fosse escrito em terceira pessoa, faria muito mais efeito e seria bem melhor.
Em "O inseto" Lúcia Bettencourt inverte a situação de A metamorfose, de Kafka. Uma barata se torna um ser humano. E uma mulher acaba por cuidar desse ser, e tenta inseri-lo na sociedade, tenta educá-lo. Ótima idéia para um conto também, e a execução não deixa de ser boa, mas talvez a extensão da história, 21 páginas, tenha prejudicado o texto. Ao fim dele, fica a sensação de que pouco foi dito, pois o que quer tenha sido dito, ficou diluído em todo o texto.
Mas há pequenas obras-primas em A secretária de Borges. Quando a autora não se deixa levar por algum autor é quando ela mostra sua verdadeira pena.
"Minha avó dançava charleston" é talvez o melhor conto do livro. Uma história simples, curta e muito bonita, de uma mulher lembrando-se dos tempos de menina e de sua convivência com a avó. Não há o que tirar nem pôr, no conto.
"Perfeição" prova aquela história de que não importa o que se diz, mas sim como se diz. E de um tema que não parece nada propício para um conto, um velho que, ao ver uma bela jovem sentada ao seu lado num banco perto da praia, Lúcia Bettencourt constrói mais uma boa história, que contra tudo o que se pode imaginar no decorrer do conto, tem um fim trágico. E não dizem que o bom conto é aquele que surpreende o leitor? Mas no caso de "Perfeição" o surpreendente não é como um prato de metal caindo no chão em pleno silêncio. É o surpreendente de uma brisa inesperada em um lugar fechado...
Pode ser pretensão minha querer aqui apontar o caminho que a escritora carioca deve ou não seguir, mas acredito que se ela se afastar um pouco das "recriações", digamos assim, como nos contos citados "A secretária de Borges" e "O inseto", e no não citado até agora "Os três últimos dias de Marcel Proust", e se aproximar das criações simples, porém profundas, como "Perfeição" e "Minha avó dançava charleston", Lúcia Bettencourt escreverá algumas das mais belas páginas da nossa literatura contemporânea.
Agradeço ao Rafael por ler o livro pra mim. É provavel, devo confessar, que eu não o leia. A não ser que ele se encaixe naquela especial categoria de livros que, de vez em quando, pulam no nosso colo. Borges talvez seja um dos escritores menos indicados para ter alguém alterando suas palavras. Olha, ele não ia gostar nem um pouco. Isso soa quase como uma provocação da autora e, talvez, seja mesmo essa a intenção. Se for, merece respeito pela audácia. De qualquer maneira, o Rafael resenha de uma forma muito legal. Dá vontade de ler, apesar de eu ficar rebatendo o argumento.
Há um conto do Eça de Queiroz (na minha opinião um dos melhores do escritor) também chamado Perfeição e é uma paródia do Canto V da Odisséia, mas sob o ponto de vista do próprio Ulisses. Neste conto, ele justifica a vontade de Ulisses em voltar para Penélope, justamente por ela ser imperfeita (em detrimento da perfeição de Calipso). Acredito que a autora do livro "Secretária de Borges" conheça este conto e que o "Perfeição" dela também seja, não diria releitura, mas uma paródia do conto.