Organizado por Angélica de Moraes, jornalista e crítica de artes visuais, O trem: crônicas e contos em torno da obra de Thomaz Ianelli (Metalivros, 2006, 95 págs.) chega até nós como rastros de memórias que, como vagões, descem pelo trilho da nossa vida nos fazendo saborear sensações já vividas há tempos, e que por terem sido tão intensas, tornam-se vagões-hoje, com o cheiro, o gosto e as lembranças vivas da nossa história.
Num casamento perfeito entre a arte de Thomaz Ianelli e os contos e crônicas feitos por seis autores consagrados como Ignácio de Loyola Brandão, Carlos Heitor Cony, Nélida Piñon, Luiz Ruffato, Lygia Fagundes Telles e Luis Fernando Veríssimo, somos agraciados com essa obra deliciosa e convidados a entrar no vagão-sonho de Thomaz. Passeamos por uma obra recheada de delicadezas cromáticas que nos traz a temática recorrente da vida cotidiana e da memória de todos nós: o trem e suas estações, as paragens que comungam com nossas lembranças o cheiro e as vozes de nosso passado.
Além dos sonhos de Thomaz, os textos nos trazem a imaginação e a memória viva que perpetua no trem suas sensações, suas observações e suas necessárias paragens. Ignácio de Loyola Brandão nos fala de um cachorro que sabia exatamente a hora de chegada do trem, às 11h37, o qual traria sua comida. O animal, pacientemente, ali esperava o vagão-sonho se transformar em vagão-comida. Carlos Heitor Cony nos traz um texto melancólico que relembra o trem de prata dos túneis que marcavam a chegada à cidade de Rodeio, com suas sensações e curvas únicas, o qual chegava trazendo cheiro novo de ar, de fogão a lenha e almoço; lá, até o sol era diferente. Nélida Piñon descreve com maestria as memórias de sua infância nos contos imaginativos de seu pai que, dentro de um vagão de trem, percorre países com a família e desbrava terras imaginárias, numa descrição vil que cheira a carvão, criando seus filhos de modo que sempre sonhem, apesar das tempestades. Luiz Ruffato narra a vida de uma mulher humilde que, enquanto espera o ônibus, relembra a vida da família no interior. Lygia Fagundes Telles recorda o tempo de menina e jovem estudante nas histórias misteriosas e sobrenaturais. E por fim, Luis Fernando Veríssimo nos conta sobre um vagão-coletivo com pessoas afins, exóticas e grandes contadores de mirabolantes histórias.
Há na obra de Thomaz Ianelli a recorrência de momentos infantis emergindo de si o moleque que gostava de trens, brinquedos, pipas e passarinhos. Trabalhou como um impressionista nas horas claras do dia, em contato com a natureza no estudo da luz e das cores, mas não herdou os conflitos da alma. Foi agraciado com o Prêmio Velázquez e fez sua primeira viagem à Europa de trem, dando início aos seus sonhos e possibilidades.
A obra de Thomaz Ianelli é clara, quase translúcida, assim como os sonhos infantis, puros, munidos de uma felicidade que irradiam cores, músicas e sonhos. Assim é a obra de Thomaz, esse homem que viveu para pintar de aquarelas claras uma vida cheia de estações, de paradas, de contos e alegrias. Em sua extensa obra não há espaço para assuntos sombrios; seu jardim é sempre florido. Em Thomaz o trem parece seguir por um trilho sem fim, cujas estações têm, além do cheiro característico de ferrovia, a permanência de uma memória viva que sempre sorri. É assim que vejo Thomaz Ianelli, como uma borboleta colorida num campo para ser descoberto e desbravado com alegria e otimismo, como quem vive para sentir, ser artista e fazer uma arte feliz que segue pelos trilhos, dentro de perpétuos vagões-sonho.