Acordei cedo e meu pé esquerdo pisou o chão em primeiro lugar. Apenas o pé direito da sandália havaiana, no piso, ao lado da cama, estava visível na obscuridade do quarto. Fui descalço para o banheiro, três ou quatro passos apenas, um calafrio premonitório subindo pelas solas dos pés no contato com a cerâmica fria.
Fui discutindo mentalmente com a voz feminina, gravada para sempre dentro do meu cérebro - a voz uníssona de mãe, tias, mulher, avó - que, ao longo da vida, se transformou nessa única voz disciplinadora, apontando meu próprio desleixo, insistindo para que eu me abaixasse e procurasse o outro pé da sandália na escuridão sob a cama, que o trouxesse de novo ao seu lugar de origem, que calçasse as sandálias e, só então, devidamente equipado, me aventurasse no chão escorregadio do banheiro.
Nesse ponto as vozes se multiplicavam de repente. Como um inocente botão do Windows ao clique do mouse as vozes se ramificavam em várias direções. As mais ternas se preocupavam com meu bem estar, com um possível resfriado me atacando através dos meus pés descalços; as mais ferozes recriminando simplesmente minha preguiça ou me acusando de sujar os pés desnecessariamente, uma vez que eu poderia voltar para a cama e então meus pés seriam pés sujos sob os lençóis. Hum...
Mas ao acordar assim, de manhã cedo, depois de uma noite relativamente mal dormida, ainda sou, por um breve período de tempo, um urso que sai de sua caverna, no final de um longo inverno. O verniz da civilidade, dos bons modos e das boas maneiras ainda está se cristalizando ao meu redor e, nesse breve período que antecede a materialização dessa camisa-de-força, sinto que posso destruir jaulas e paredes com minhas garras de urso. Rosno baixo, pra mim mesmo, deliciado como um grande grizzly das montanhas com sua própria ferocidade, tão primitiva quanto eu mesmo e tão pateticamente efêmera em sua mínima aparição.
Na semi-obscuridade do banheiro noto que algumas mãozinhas - sei muito bem de quem são - andaram brincando com o sabonete, sobre a pia. Ele está úmido e gosmento e, de forma bastante engenhosa, equilibrado sobre o tubo da pasta de dentes. Quando tento pegar o tubo, todo ensaboado, este me escapa das mãos como um peixe vivo, mergulha direto para o chão, escorrega pelo piso e some pela única fresta existente em todo o banheiro - o espaço de alguns centímetros que existe sob o aparador da própria pia.
O urso vai ter que se abaixar, afinal. Minhas mãos não passam pela fresta e eu seguro o aparador por baixo e o sacudo com certa violência, de pura frustração. Isso faz com que uma das gavetinhas superiores, cheia de cosméticos (as minhas gavetas são as de baixo), escorregue malignamente pra fora. Quando me levanto, meto o alto da cabeça bem na quina da gaveta. O barulho é considerável, as coisas pulam e se espalham no chão, e eu faço "huurrrmmm!!!", com a boca fechada, mas bastante alto para ser ouvido na casa toda.
Do quarto, ouço uma risadinha. Ela fala: "Cê tá começando bem essa sexta feira 13..." Me olho no espelho, já totalmente acordado, esfregando com a mão o alto da cabeça, pensando: "Putz! Sexta feira 13..! Se cuida, urso véio."
Shultze, ursinho de pelúcia, o que faz essas coisas acontecerem em uma sequência digna de qualquer comédia, justamente em uma sexta 13? Infelizmente, não é só nesse dia. Você já ouviu falar no mistério que envolve um pé de sandália que se perde, em pés de meias que nunca são achados, em objetos que acabamos de ver e de repente somem, quando precisamos usá-los? Bom, você se transforma em urso meio feroz e volta ao normal, tem gente que nunca mais volta a ser o que era, são pessoas cujos mistérios como esses as abalam e para sempre se tornam animais enjaulados, vítimas dessas travessuras da vida. Nunca dormem sem saber que os chinelos estão no lugar (os dois) e que as meias estejam nas gavetas em pares (coladinhas). Seu texto me lembrou Fernando Sabino. Adorável. Parabéns! Beijo. Dri
Poderia ser qualquer dia, do mês, da semana; é quando o universo conspira contra quem não se previne contra a má sorte (falar azar, dá azar...). Ah, também tem o acaso que nestes dias só funciona contra. Dizem que nestas datas o melhor é não sair da cama... Guga, um texto escrito com a precisão de sempre e com o senso de humor que faz com que as trivialidades do cotidiano ganhem cor e relevância; que é precisamente a transformação do humor em bom humor. Uma travessia tão leve pelo texto que chega-se a perder a referência da primeira pessoa, imagético e fluente, concordo com a Adriana pelos bons momentos do Fernando Sabino.