A páscoa é o período em que brasileiros ficam loucos para aproveitar uma praia, crianças ficam loucas para ganhar ovos de chocolate, a igreja fica louca para que os fiéis compareçam às encenações da paixão de Cristo e os canais de TV ficam loucos para conquistar eventuais telespectadores por meio de programas voltados... não para Meca, mas para a religiosidade cristã ou para a vida secreta das celebridades (que de secreta não tem nada).
Eu mesma não estava louca por nada disso, mas apenas por um descanso numa cidade interiorana. Entretanto, como essa loucura toda envolve a gente desde a rodoviária até o destino final, resolvi dedicar meu sacro-ócio à leitura na tentativa de abstrair-me desse turbilhão de informações inúteis.
Inspirada no estudo antropológico-lingüístico sobre os hábitos de leitura que a talentosa poeta Ana Elisa Ribeiro publicou no Digestivo Cultural, escolhi a dedo um livro que me acompanhasse durante a Semana Santa. E no meio da muvuca de desesperados da rodoviária, refugiei-me naquele ambiente minúsculo e pouco procurado: a livraria da rodoviária de Belo Horizonte.
Depois de meia hora de busca - sim, porque escolher um livro para ler merece o mesmo ritual da escolha de um filme numa locadora, afinal, tem dias que a gente não tá a fim de ver comédia, mas aventura e vice-versa... Onde eu estava mesmo? Ah, sim... Depois de meia hora de busca, acabei me decidindo por um formato de bolso, "óóótemo" para viagens. E o vencedor foi: A mulher que escreveu a Bíblia (Companhia de Bolso, 2007, 168 págs.), do Moacyr Scliar, aproveitando o período propício ao exercício de uma leitura... er, digamos, bíblica.
Nunca fui aspirante à santa e, embora tenha sido batizada, não cheguei a fazer a primeira comunhão. Sempre tive dificuldades em compreender a história das religiões e, quando pequena, misturava tudo. Eu via aqueles filmes românticos e pálidos da Sessão da Tarde, sempre com os mesmos atores, e não entendia o que a Fúria de Titãs e o Ali Babá tinham a ver com os vendilhões do templo ou com o cara barbudo que abria o Mar Vermelho. Tá bom, eu confesso: durante muito tempo, achei que quem havia segurado os dez mandamentos tinha sido o Matusalém. Aliás, Moisés, Maomé e Matusalém... era tanto M que eu nunca soube quem fez o quê (Isso é que dá ter um pai comunista... Em vez dos salmos da Bíblia eu decorava os quadrinhos da Mafalda. Em castelhano!). Só quando essa alienação toda começou a me fazer passar vergonha é que fui pesquisar melhor sobre o tema. Mesmo assim, muita pesquisa na base da gozação e do pastiche.
Minha idéia inicial para a Semana Santa era degustar o livro do Moacyr Scliar com calma, mas acabei devorando-o em menos de dois dias. A grosso modo, o enredo é o seguinte: após uma regressão à vida passada, uma mulher descobre ter sido uma das 700 esposas de Salomão. O dom da escrita compensa sua feiúra inata e faz dela a responsável pelo registro da história da humanidade, desde a criação - quando tudo era verbo - até as previsões pós-Salomão. Enquanto ela se dedica à tarefa que o rei e marido havia lhe incumbido, espera, ansiosa e desesperadamente, pelo momento em que ele deverá abstrair a feiúra dela e dar um trato na macaca, ou seja, consumar o casamento.
O livro é bem engraçado e merece destaque a forma como o Moacyr brinca com a linguagem, misturando o erudito a gírias e palavrões. Em meio a "Porra, Salomão!" e "Afinal, cara, o que queres de mim?", A mulher que escreveu a Bíblia vai se mostrando como uma heresia. Uma deliciosa e divertida heresia cujo mote - a possibilidade de a Bíblia ter sido escrita por uma mulher - foi uma excelente sacada que o autor pegou emprestado do crítico Harold Bloom.
Em Jesus e Javé, Bloom analisa os diversos nomes, bem como as diferenças de temperamento, atribuídos ao Todo Poderoso em diversos textos religiosos. A conclusão, se é que se pode chegar a alguma, é a de que o Inominável é um ser multifacetado, polivalente e completo, composto por diversos "eus" e personagens. Enfim, uma espécie de "Gita", do Raul Seixas, que é o tudo e o nada ao mesmo tempo e está contido na letra A. Quase um "Aleph". Ou talvez o "Aleph" esteja contido nele.
A certa altura, Bloom parece entrar em parafuso e questionar a própria existência. Mais ou menos nessa hora, ele lança a dúvida: e se a Bíblia foi escrita por uma mulher?
Lembro que essa passagem me chamou bastante a atenção. Tenho uma amiga que acha que Deus não é Deus, mas Deusa. Mas daí a uma mulher escrever a Bíblia... Achava mais difícil conceber essa idéia do que o fato de Deus ser Deusa. Afinal, como os homens deixariam uma mulher escrever naquela época? Ainda mais a Bíblia. Além disso, o texto bíblico exala um machismo tão forte que uma mulher não poderia tê-lo escrito.
Mas aí vem o Moacyr de novo, com sua heroína precursora do feminismo já na Antigüidade. Além de dominar a escrita (atividade exclusiva de homens sábios), a protagonista exige de Salomão o cumprimento das obrigações maritais, promove um levante no harém, reinventa o papel de Eva e de diversas passagens bíblicas e, ao fim de tudo, ainda deixa a condição de 700ª esposa do rei para ir atrás de um pastorzinho maltrapilho e da própria liberdade.
A personagem de Moacyr faz, nesse livro, as indagações que eu sempre quis fazer. O mais legal é que, embora lúdicas e sem compromisso com a verdade dos fatos, as respostas que a narrativa dá a essas perguntas satisfazem nossa inquietação - a minha e a da protagonista.
Num mundo imaginário em que a seriedade histórica encontra o humor contemporâneo, o que fica é a certeza de que, desde sempre, tudo gira em torno do egocentrismo humano e que a pior idéia ocorrida desde a Pangéia foi a invenção de um Deus único.
O peso da tradição sempre emperrou a reformulação do pensamento e levou a humanidade a persistir em absurdos históricos, como os 300 anos de Inquisição da Igreja Católica, ou a Guerra Santa. Parece que toda atrocidade cometida coletivamente em nome de Deus é passível de perdão, ao contrário dos hereges isolados que desenham caricaturas de Alá, de humoristas que retratam Jesus cantando e dançando na cruz ou de escritores que atribuem a escrita da Bíblia a uma mulher.
A mulher que escreveu a Bíblia é um texto despretensioso que põe a gente para pensar em outras possibilidades: afinal, foi Deus quem nos criou ou nós quem O criamos?
Que Ele me perdoe essa pergunta. Que Zeus nos proteja uns dos outros! E que o Buzz Light Year proteja o Moacyr Scliar.
Ao infinito e amém!*
* Direitos autorais a Pedro Fazito Morais, que aos quatro anos adaptou o original "ao infinito e além", com um tiro acidental, inocente e certeiro.
Pilar, um depoimento original! Só acrescentando que o que Harold Bloom supõe é que o autor de partes do Velho Testamento seja uma mulher, que ele chama de a "Javista", ou seja, a responsável pela figura passional do velho Jeová. Bloom reconhece a mão feminina na criação de um personagem digno do "Morro dos Ventos Uivantes"; haja drama e paixão... Lembrando também que, se somar tudo, a Inquisição dura por volta de setecentos anos. De qualquer maneira, escrevo para elogiar seu ótimo texto. Parabéns pela originalidade.
Ainda bem que tem gente como eu, que confunde Moisés com Maomé e coisa e tal. Gostei de seu texto pela sinceridade/originalidade e pela forma como foi escrito. Que Zeus perdoe a todos nós e salve Moacyr Scliar do mármore do inferno!
Belíssimo e ousado, um texto feminino sem o sexismo dos axiomas da vez, engraçado por nos fazer jocoso diante da fragilidade do protagonismo masculino. É muito bom rir da convicção formal da sociedade masculina e perceber quanto desses espaços estão sendo dividido generosamente por sensibilidades como Moacyr Scliar e mesmo Bloom. Texto conciso com ritmos e imagens vibrantes, Pilar.