No cruzamento tinha um sinal, mas, como de costume na grande cidade, os pedestres circulavam da maneira como bem entendiam. A obediência requerida ao vermelho não é seguida, a máquina que funciona é a da percepção espacial: o carro longe do alcance do corpo. O livre-arbítrio permite que nem sempre se atravesse na faixa de segurança. Na confusão do trânsito, casais se separam, às vezes voltam a se encontrar em meio às buzinas, crianças se perdem. Quem sabe um motorista desavisado da pureza não tenha tempo de parar. Outro, alucinado, apesar do amarelo piscando a todo instante, mantenha sua trajetória. Alguém já pensou que, quando o amarelo pisca, seus olhos podem estar se fechando no exato momento? Ou então, é a alta velocidade que o cega, seu destino invisível.
A cidade em força esplendorosa nas ruas e pontes e avenidas - mundo moderno de sempre, que não espera para acontecer. A vibração urbana arrastando os sentimentos. Flecha em chamas. Corpos sombreando estreitas calçadas plenas de segredos. Os conflitos e dúvidas pisaram-nas, inculcando pedaços de loucura e sujeira. A escuridão só não é total por causa das inúmeras luzes vermelhas tremulando inconscientes. Vertiginosa velocidade, perpassar por ela com os olhos fechados causa intenso prazer. Poucos são os que se lançam ao mar vermelho de carros.
Imunes ao barulho, dois pontos permanecem, cada um dentro de si num turbilhão de pensamentos. A visão da cidade exaltando os sentidos: algo nela se alinha com parte de nós. Atravessamos sempre no caminho livre.
As ruas, estas, lançam sinais de desconforto, despedida e alívio.
Parabéns pelo texto, é estruturado de modo a permitir uma interpretação mais subjetiva, o que muitas vezes falta na prosa. A vida urbana, certamente, inspira. O cotidiano é tão corriqueiro que, instintivamente, a cidade é só mais uma forma de organização, e os carros e as vias pelas quais trafeguam somente mais um obstáculo para pressa da locomoção. Loucuras minhas à parte, não foi um tempo perdido, porém ganho lendo o texto.
Elisa, admiro de forma discreta a elegância e estrutura dos seus textos e hoje em especial o exercício de fluir partindo de uma direção cotidiana, tornando eventos de importância reduzida, devido a sua exaustiva repetição, únicos em seus significados mais insuspeitados. Caminhar em meio à selva urbana é interagir e fazer parte de sua fantástica estrutura é ser simultaneamente pergunta e resposta para os cruzamentos de todos os desejos que se perpassam. Dentre todas as imagens que seu texto ressalta o que mais me encanta é a espontaneidade com que constrói o subjetivo, transformando a matéria fortuita do cotidiano em conexões singulares com nossa essência.