De um modo geral, a música de concerto guarda certo mistério no que se refere à execução de suas peças. Em outras palavras, é como se o espectador ― sim, sim, leitor, o público ― guardasse para si, e apenas para si, a versão definitiva de algumas obras a partir de uma única execução. Sobretudo aquelas que não pertencem ao repertório mais comum desse público, que, embora não seja especializado, se interessa pelas apresentações, na exibição e, claro, na performance das orquestras que contam com um programa previamente estabelecido. Nesse caso em particular, observa-se que a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, ajuda a estabelecer o gosto desse público por essas obras. Dito de outra forma, é bom que o primeiro contato de certa fatia do público com algumas obras seja através da Osesp.
O concerto da última sexta-feira, 28 de agosto, pode ser analisado com base nessa perspectiva. Estava lá a Osesp, com o maestro convidado Gabor Ötvös, juntamente com o violista chileno, naturalizado norte-americano, Roberto Díaz, cuja aparição, na segunda peça, fez o público admirar seu talento de virtuose, tal como um guitar hero dando uma canja para o público. Ok, leitor, a comparação talvez não seja das mais precisas, mas a sensação, para o público presente, era exatamente esta: um êxtase desses que só pode ser proporcionado por um talento musical.
Antes de Díaz, no entanto, quem conduziu a orquestra e o olhar do público foi Gabor Ötvös. Com poucos gestos, mas de forma bastante acurada, ele soube articular o conjunto de músicos à sua frente a ponto de não somente fazê-los executar as respectivas partituras da Sinfonia nº1 em Ré maior, do russo Serguei Prokofiev, mas, efetivamente, fez com que a orquestra interpretasse à sua maneira a obra.
Desse modo, mais do que a correção das notas e dos compassos, houve, portanto, espaço para uma leitura que extraísse as partículas elementares da peça, com cada movimento sendo devidamente pontuado para que o público tivesse consciência de suas diferenças. Destaque, aqui, para a presença das cordas, com os violinos fazendo valer sua distinção em relação aos demais naipes. Após esses 15 minutos iniciais, foi a vez da obra de Béla Bartók sofrer a intervenção da Osesp. Desta vez, no entanto, a empatia junto ao público não foi necessariamente imediata, a ponto de, durante o intervalo, ser possível ouvir, em tom mais informal, que Bartók era um tanto mais denso a ponto de os vinte minutos terem parecido uma eternidade para alguns.
Neste Concerto para Viola, no entanto, o melhor estava com o solista Roberto Díaz, que, a certa altura, travava uma espécie de duelo com o restante da orquestra, obtendo resposta às frases emitidas por seu instrumento. Contudo, mesmo nesse momento, parecia existir uma distância entre a obra e a plateia, que, por sua vez, parecia enfadada. Essa quase monotonia só se quebrava quando o músico habilmente interpretava o solo. Aqui, ele chamava a atenção do público de volta para o espetáculo, longe, portanto, de qualquer abstração. Não por acaso, os aplausos na sequência quebraram um pouco a solenidade, e ele concedeu um improviso soberbo para o público, que novamente se esbaldou com a destreza e com a interpretação do violista.
Logo depois do intervalo, coube ao maestro Gabor Ötvös apresentar a Sinfonia nº9 em mi menor, Op.95 ― Do novo mundo, do tcheco Antonín Dvorak. Nesta ocasião, foi possível constatar tamanho envolvimento entre a peça e o público ― seja pela sonoridade, seja por sua força expressiva ― que a audiência parecia mais à vontade com a obra, ainda que esta tivesse maior tempo de duração. E, ao longo dos movimentos, a audiência era cativada pelas madeiras ― fagote e oboé, pela ordem ― do mesmo modo que era atraída pelo toque dos metais ― trompetes e trompas, respectivamente. Ao final, o mistério e a novidade deram lugar ao encantamento e à impressão de que algumas obras, de fato, são sensíveis a execuções que funcionam como experiências definitivas para a formação do gosto.
Caro Fabio, imagino que você não tenha querido entrar nesta seara, mas eu sinceramente acho que ela tem de ser abordada. A diferença entre a reação do público a Bartok é bastante simples de ser explicada por ser a única peça caracteristicamente "século XX" dentre as três executadas (apesar da Sinfonia nº 1 de Prokofiev ser do século XX, ela ainda não segue os cânones desse século, tanto que tem o subtítulo de "Clássica") e a música dita "contemporânea" simplesmente não consegue agradar ao público da mesma forma que a dos séculos anteriores. Desinformação? Pode ser. Falta de hábito? Também. Mas eu, como músico que sou, me arrisco a dizer que também é falta de beleza... Da música, claro. É aí que entramos na seara que acho que você não quis entrar...