O endereço é histórico, rua Barão de Itapetininga, 93. O ano, 1982. Minha vida de editor já começara havia algum tempo, mas foi com a coleção Tudo é História que eu pela primeira vez ganhei autonomia editorial e liberdade de decisão. Não precisava aprovar previamente a escolha dos títulos e dos autores; podia ler sozinho os livros e, se quisesse, gritar da janela do último andar, para que todos ― do centro de São Paulo até o Brás, onde ficava a gráfica dos livros de bolso da editora Brasiliense ― ouvissem: IMPRIMA-SE!
Ao propor ao Caio Graco Prado uma coleção como a Primeiros Passos, só que voltada exclusivamente para livros de história, ouvi com surpresa: "Boa; só que essa você mesmo vai editar". Não era a primeira vez que o Caio me surpreendia. Alguns anos antes, depois que reportei a ele que não havia conseguido convencer nenhum crítico literário importante a organizar uma coletânea de contos de Lima Barreto, Caio mandou entregar, na minha sala, as obras completas do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma, em capa dura e encadernação vermelha e preta, com um bilhete ao recém-promovido estagiário: "Luiz, divirta-se, faça a antologia você mesmo".
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Em duas ocasiões eu aguardei, do lado de dentro da alfândega do aeroporto de Cumbica, a chegada de um escritor estrangeiro. O apoio do serviço cultural da embaixada americana às viagens dos autores convidados pela editora me conferia esse privilégio.
Na primeira vez, eu esperava por John Updike, que desembarcou de tênis e sobretudo longo, preparado para chuvas tropicais. Com um sorriso maroto, foi logo dizendo, "vocês não deveriam ter feito isso comigo, eu não estou acostumado com tratamento first class". Ele se referia ao upgrade de sua passagem que havíamos conseguido. Pouco depois, a reclamação, em tom de gozação, quase virou tragédia. No almoço, Updike passou mal, pediu para ir ao banheiro, de onde não saía. Fernando, meu sócio, era a favor de que fôssemos ao seu encalço. Eu fui contra. Ele estava certo. Lá, encontramos John Updike quase desfalecido, verde, dizendo "I said, first class!". Queríamos chamar um médico, mas Updike recusou, alegando que acabara de escrever sobre um ataque cardíaco, e por isso sabia que não estava tendo um. Levei-o ao hotel e pedi para que me permitisse aguardar no seu quarto. Updike saiu-se com mais uma frase de humor negro: "não, obrigado, estou melhor e, afinal, se acontecer algo comigo, a camareira saberá o que fazer".
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Apesar do começo pouco alvissareiro ― com a fatídica pergunta sobre Camile Paglia ―, a primeira visita de Susan Sontag ao Brasil foi um sucesso. Em alguns momentos cheguei a temer que esse sucesso me custaria caro. Susan gostou tanto do Brasil que, no meio da estadia, disse que desejaria se mudar para São Paulo, assim como fizera com Tóquio e Berlim, e mais tarde faria com Sarajevo ― cidades pelas quais se apaixonara e nas quais decidira morar por pelo menos seis meses.
No aeroporto, a minha apresentação como o editor de Paglia no Brasil ainda vibrava silenciosamente no ar, e com ela a expressão frustrada de Susan. Abri os braços, sorrindo acanhado, com os olhos baixos. Susan entendeu que eu pedia desculpas. Emendei com um "sorry" e continuei: "escolhi alguns dos meus CDs favoritos para ouvirmos no carro, Chico, Caetano, Tom Jobim, ou, se você preferir, Beethoven e Bach?". Nesse momento as pesadas malas de Susan chegaram. Enquanto as colocava no carrinho, ela me perguntava ansiosa sobre qual Beethoven eu trouxera para ouvir. "O concerto de piano número 3 é o que tenho no carro, com Arthuro Benedetti Michelangeli." Bingo! Camille Paglia virou passado e Susan sorriu com franqueza. Nossos gostos musicais combinavam, o que para ela era mais que um sinal dos deuses ― Susan era uma colecionadora de discos ainda mais obsessiva do que eu. Descobrimos que ambos vivíamos atrás da gravação perfeita das mesmas peças musicais, uma prova de comportamento patologicamente perfeccionista dos dois.
No caminho para o carro fui bombardeado com perguntas sobre as minha gravações favoritas da última sonata de Schubert, ou das Variações Goldberg de Bach. Satisfeita com minhas respostas, Susan pediu que a levasse, logo depois do check in no hotel, para a melhor loja de CDs de São Paulo, e, no almoço, logo a seguir brindou, com algumas caipirinhas, às nossas coincidências musicais. Na loja, a Musical Box da praça Villaboim, poucas horas depois de me conhecer, Susan já me presenteava com uma versão que achava curiosa da tal sonata de Schubert e com uma caixa da ópera Vec Makropulos de Janacék, sobre uma mulher de mais de trezentos anos de idade, em busca do elixir para prolongar sua vida por outro tanto. (Não era difícil entender o fascínio que essa ópera exercia sobre nossa autora). Susan transbordava energia, estava sempre à frente de seu tempo, ouvindo óperas pouco encenadas, lendo livros que ninguém lia em seu país. Foi ela quem me apresentou às obras de Sebald e Bolaño, muito antes da Bolañomania.
Estava na plateia do auditório do Masp quando Sontag veio ao Brasil para lançar "O Amante do Vulcão". Fiz-lhe, então, por escrito, conforme o combinado pelo próprio Schwarcz - seu editor no Brasil -, uma pergunta sobre a literatura de Clarice Lispecotor. Ela respondeu de modo seguro que não gostava da literatura de Lispector, pois não se interessava por escritores cujos escritos se assemelhavam a depoimentos subjetivos de si mesmos. Sontag poderia ter dito que não conhecia a brasileira, mas revelou conhecê-la e, mais do que isso, tê-la lido. Hoje fica a forte impressão de que suas leituras de Lispector (indicadas pela sua ex-companheira Irene Fornés) foram de livros como "Água Viva" ou "Um sopro de vida", que na época faziam sucesso junto à crítica feminista. E que que Sontag não teve oportunidade de ler os melhores livros de Lispector. De todo modo, foi uma noite memorável, Sontag toda de preto a ler trechos do seu então recém-lançado no Brasil romance, que ela não admitia ser um romance histórico.
No mundo em que impera a desarticulação de valores individuais e a quase completa massificação do processo cultural, os seres pensantes são como peixes que nadam ao contrário da correnteza, mas também são os líderes de cardumes, capazes de sobreviver ao estio, e movem-se com tamanho sentimento que chegam a provocar a inversão no curso de um rio. Todavia, enquanto ser pensante, o artista deve ter o cuidado de não impor à sua arte a qualidade de única arte essencial, de não bulir no seu exagero, de não criar códigos particulares de mensagens que tornem o seu produto uma arte quase irreconhecível. Isso torna necessário que o artista tenha à mão um porta-voz, alguém que o conecte aos receptores, com o delicado ofício de saber selecionar quem deve ser mensagem, e a quem deve ser dirigida. Nesse quesito, ninguém no mundo supera o Schwarcz.