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Quinta-feira,
17/4/2003
Ter e Não Ter, de Hemingway
Ricardo de Mattos
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Ao mencionar-se o nome de Ernest Hemingway (1.898/1.961) creio ser O Velho e O Mar o primeiro livro a vir à mente de seus admiradores, possivelmente seguido por O Sol Também Se Levanta e Por Quem Os Sinos Dobram. Ter e Não Ter talvez seja obra para seus leitores mais fiéis, desejosos de conhecer a totalidade de seus escritos. O livro foi publicado no ano de 1.937 quando o escritor já morava em Key West, principal ilha de um arquipélago homónimo situado no Golfo do México, mas já bem próximo ao Estreito da Flórida.
A época era de instabilidade política em Cuba. A luta pela independência iniciou-se com a "Guerra Pequena" de 1.879 e desdobrou-se por todo o final do século XIX. Em 1.895 deu-se a última guerra, esta com auxílio norte americano, prolongada até 1.898, quando a Espanha renunciou definitivamente a Cuba através do Tratado de Paris. O interesse dos Estados Unidos é evidenciado pela posição geográfica da ilha, situada bem ao sul do Estado da Flórida e muito mais perto que Porto Rico. Era necessário ter como aliado, ou protectorado, um país localizado tão estrategicamente.
O ímpeto norte-americano foi exagerado e ocasionou descontentamento à nova nação. Além de governar Cuba até 1.902, os Estados Unidos mantiveram sobre ela um direito de fiscalização prolongado até 1.934, enfim obstado pelo primeiro governo revolucionário provisório instalado em 1.933. Este governo de insurrectos depôs o então ditador Gerardo Machado, citado no livro. Nem Espanha, nem Estados Unidos. Os cubanos queriam liberdade e autonomia política plenas. O século XX foi marcado pela alternância entre ditaduras e golpes revolucionários responsáveis pelo acesso ao poder por outros ditadores. Finalmente em primeiro de janeiro de 1.959 - "Dia da Libertação Nacional" - obtém o domínio o actual ditador. Aderindo ao comunismo, Cuba conseguiu livrar-se da insistente abordagem norte-americana, mas sofreu o conhecido embargo económico.
Ter e Não Ter, portanto, foi escrito neste período de golpes e contra golpes, tendo Cuba e Key West como cenários. São 241 páginas bem lidas n'um final de semana. Não é um libelo político conforme esclarece Harry Morgan, o personagem principal, a certa altura: "Que merda me interessa essa revolução! Que se foda sua revolução! Para ajudar os trabalhadores, assaltam um banco e matam um camarada que estava com eles e em seguida assassinam o pobre Albert, que nunca fez mal a ninguém... Foi um trabalhador que eles mataram. Nunca pensam nisso. Um trabalhador com família. São os cubanos que governam Cuba. Todos atraiçoam uns aos outros. Todos vendem uns aos outros. Têm o que merecem. Para o inferno suas revoluções! Tudo o que quero fazer é ganhar a vida para a minha família e nem isso posso fazer agora! E vem esse cara me falar dessa tal revolução. Que se dane a revolução dele!" (página 169). Repare-se na brevidade dos períodos.
Este trecho, além do posicionamento político de Morgan, mostra sua truculência característica e sua principal preocupação: manter a família. Está absolutamente despreocupado com os meios e recursos empregados, dês que sua mulher e suas filhas comam. Tendo o irrestrito apoio daquela, contando com a ignorância destas e seguidor do princípio segundo o qual "não há lei que obrigue a passar fome", nenhum escrúpulo tolhe suas acções. Para barrá-lo, suas filhas precisariam rejeitar o alimento comprado com dinheiro obtido através do crime, e isso dificilmente ocorreria. Inicialmente, Morgan alternou o trabalho honesto com pequenos contrabandos, mas logrado por um turista e depois perdendo um braço, dedica-se totalmente às acções criminosas. E assim transcorreu sua vida; ter e não ter dinheiro e sossego, ter e não ter uma vida tranquila, ter e não ter o que levar à mesa. Uma vida de ilegalidade n'uma época ruim para cubanos e para norte-americanos a sofrer os danos da recessão de 1.929.
A figura do bom bandido - o assaltante, o político canalha, o homicida de aluguel, o contrabandista, o traficante -, aquele que volta para a esposa e filhos com víveres e presentes adquiridos depois de um crime, é frequente na literatura. Deve ser lembrada a figura de Bené, no livro Cidade de Deus. Personagens com este dualismo de carácter encontram sempre seus admiradores e paladinos. Na vida real, o próprio ditador cubano não se manteve no poder sem verter sangue alheio, mas consegue transmitir simpatia e afastar questões.
O relevante da história apresenta-se na terceira e última parte. As duas primeiras apontam ao personagem e ao ambiente de bêbados, contrabandistas, desocupados e assaltantes no qual ele vive. Sua própria esposa parece ter sido prostituta. Observe-se a inconstância na escolha do narrador. Na primeira parte a narração é feita em primeira pessoa. Na segunda, em terceira pessoa, com narrador omnisciente. A terceira parte também em terceira pessoa, porém com narrador personagem no primeiro capítulo e de novo omnisciente até o final.
Por fim, se é certo procurar em livros um alter ego para o escritor - qualquer escritor -, imagino que em Ter e Não Ter o de Hemingway seja Richard Gordon, personagem aparecido do meio para o fim e sem alguma importância aparente. Destaco ainda no capítulo 24 alguns esboços bem ásperos que o autor fez de tipos americanos encontrados mas talvez não aproveitados na obra.
Para ir além
Ricardo de Mattos
Taubaté,
17/4/2003
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