Gustavo Bernardo, organizador da coletânea de textos Novas Seletas José de Alencar, define clássico como a obra que, com o passar do tempo, não cessa de surpreender as sucessivas gerações. Um clássico também pode ser aquela obra que pode ser relida diversas vezes pela mesma pessoa, oferecendo-lhe a cada vez uma nova surpresa e uma nova perspectiva. Para Bernardo, Alencar é e sempre será um clássico e, para demonstrar isso, selecionou 14 textos do autor romântico. O livro, lançado recentemente pela Nova Fronteira, é uma oportunidade para os leitores de hoje conhecerem o escritor que dominou a literatura brasileira no século XIX e conferir se sua mensagem ainda é atual.
O resultado final é muito irregular. Os piores momentos são os capítulos de romances. Esses textos podem ser facilmente encontráveis, na íntegra em coleções populares. Crônica e artigos, por outro lado, apresentam um José de Alencar pouco conhecido e na sua melhor forma.
A crônica Ano Velho, por exemplo, mostra um autor maduro que flerta com o realismo fantástico (que não existia na época). Alencar escrevia para os jornais e era costume dos cronistas ao final de cada ano fazer uma avaliação do período. Em 1854 ele teve a brilhante idéia (não, não estou sendo irônico, antes que me perguntem) de fazer o ano velho visitá-lo na forma de um senhor idoso.
O senhor, sabendo que o escritor irá fazer um balanço do ano que termina, quer convencer Alencar de que foi melhor que os anteriores. E começa a apresentar exemplos de como foi positivo, exemplos logo refutados pelo escritor. O diálogo que se segue é de um humor machadiano e não lembra, nem de longe, Alencar.
Ao comentar que foi o responsável pela iluminação a gás das ruas, 1854 ouve do escritor o ponto de vista de alguns críticos, segundo o qual a iluminação tirou da cidade o encanto dos belos luares e privou os namorados daquelas noites escuras "tão favoráveis a uma conversinha de rótula, ou a um passeio na rua do Ouvidor".
O ano-velho, sábio, retruca: "Ora, senhor, esses homens não sabem o que dizem: todo o namorado, toda a mocinha - é coisa sabida - precisa de um pouco de gás".
O humor sagaz não o livra da acusação de que o preço do gás é exorbitante, numa situação semelhante hoje ao preço da energia elétrica. Alencar, que não é acionista da companhia de gás, tira do ano o mérito.
E a conversa continua assim, com um humor fino, até quase o final, quando o escritor perde a mão. Este reclama ao ano que se acaba de ter-lhe causado males, mas um principal: tê-lo feito um ano mais velho. Até aí, nenhum problema, a observação tem espírito, mas vira desculpa para o escritor desandar em suas viagens poético/redundantes: "o que há nesse mundo que valha os nossos sonhos cor-de-rosa, as nossas noites de plácida contemplação, os idílios suaves de nossa imaginação a conversar com alguma estrela solitária que brilha no céu, semelhante a essas amizades santas".
Bernardo diz que o principal defeito apontado pelos críticos ao autor de Iracema é o exagero, e argumenta, citando Kafka, que "quem exagera, super-vê". Mas não dá um pio sobre a mania do escritor de usar dez palavras para dizer algo que poderia ser dito com uma. Um exemplo, entre muitos: "Sobre aquela botina via elevar-se como sobre um pedestal um vulto de estátua, mas vago, indistinto; e contudo esse esboço sem formas sedutoras, aquela sombra sem alma e sem calor, lhe parecia de uma beleza deslumbrante. Não era ela a mulher a que pertencia o mais formoso pé do mundo, o mimo, a obra-prima da natureza". Não contente em dizer que o pé é formoso, Alencar diz que é também um mimo e ainda uma obra-prima.
É essa característica que torna a obra de José de Alencar difícil para o leitor atual. Num tempo em que tudo corre, a redundância do escritor enerva. Ao contrário de Machado de Assis, por exemplo, que é informação em estado puro, até pelas várias possibilidades de interpretação que obras como Dom Casmurro oferecem, Alencar é muito mais redundante que informativo.
Quanto ao palavreado, esse não apresenta problemas, pois o organizador inseriu, em pequenas caixas, textos elucidando palavras ou detalhes pouco conhecidos, apresentando assim, um recurso a mais para o leitor compreender Alencar. Assim, ao ler que o dia de São Silvestre está chegando, o leitor é informado que "Silvestre foi o primeiro papa a ocupar o cargo depois que Constantino I legalizou a Igreja Cristã, em 313 d.c. O dia de São Silvestre é o último do ano, o que explica o nome da corrida de São Silvestre, em 31 de dezembro, no Brasil". O leitor descobrirá também que "ressaibo" é o mesmo que sinal, indício.
Além dos textos pouco conhecidos de Alencar, o livro traz de interessante parte do livro A Pata da Gazela, que certamente interessará aos fetichistas. No século XIX deve ter causado furor a história do homem que se apaixona pelo pé de uma moça. Pelo pé, diga-se, não pela moça. O que viesse junto, era ganho. O interesse do pobre Horácio era apenas o pezinho de número 28. O texto, bem-humorado, é cheio de conotações psicológicas. Primorosa é a seqüência em que ele sente ternura pelos sapateiros por fazerem botinas para tão lindo pé e, logo em seguida, ciúmes por eles manipularem o objeto de sua paixão.
Imperdível o momento em que a moça entra no carro e o moço exclama: "Senhor! Por que em vez de homem não me fizeste estribo de um carro! Teria a felicidade de ser pisado por aquele pezinho".
Enfim, Novas Seletas é talvez a melhor forma de entrar em contato com um escritor de uma época totalmente diferente da nossa, em que as pessoas tinham tempo para longos textos repetitivos na essência. O trabalho de seleção, organização dos textos e notas é digno de elogios, assim como a qualidade gráfica.
Gian, queria te agradecer pelo comentário feito sobre a minha tradução de A Voz do Fogo e pela excelente resenha sobre esse belo livro de Alan Moore lançado pela Conrad.