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Sexta-feira, 29/6/2001
Bárbaros e bárbaros
Rafael Azevedo
+ de 2600 Acessos

"Se é pra abolir a pena de morte, gostaria de ver o primeiro passo sendo tomado por meus amigos, os assassinos." Alphonse Karr (1808-1890), jornalista e escritor francês.

A pena de morte vem fazendo novas vítimas. A mais recente é ela mesma, quase sentenciada ao seu próprio fim, após ser constantemente atingida em todos os lados por uma massiva campanha orquestrada, entre outros, pela imprensa e entidades defensoras dos "direitos humanos". Esta campanha consiste em ataques e críticas irrefutáveis, bem-intencionadas e enérgicas, porém paradoxalmente equivocadas, intolerantes e impensadas. Explico. Bush "Jr.", por exemplo, foi recebido na Europa por hordas de manifestantes boçais (pleonasmo?) vestidos de carrascos, bradando em defesa da vida do terrorista que mais matou na história de seu país - Timothy McVeigh, executado recentemente. Segundo os que se opõem a tal punição, ninguém tem o direito de tirar uma vida alheia, por pior que seja o crime cometido, e justificam isso quase sempre através da religião, falando em nome do que julgam ser a "doutrina cristã". Dificilmente pode-se contestar isso, ou sequer discutir; afinal, longe de ser uma argumentação, e de seguir uma linha de raciocínio, esta opinião está fundamentada, antes de tudo, numa crença - que em qualquer país com um mínimo de liberdade religiosa não deveria ser imposta aos que nela não crêem, nem ser ameaçada pela imposição de outras crenças. E da mesma maneira que os que se opõem à pena capital encontram seus "argumentos" na doutrina cristã, e na Bíblia (especialmente no Novo Testamento), os que estão a seu favor podem muito bem encontrar, na mesma Bíblia, tal punição sendo recomendada (constantemente no Antigo) por Deus himself, e até mesmo sendo posta em prática algumas vezes.
Apelando, entretanto, unicamente à razão, e desprezando sentimentalismos e crendices, torna-se mais fácil chegar a um veredicto.
Muitos dos opositores desta suma punição também parecem ter alguma dificuldade em entender que a implementação da pena de morte não é uma medida preventiva (embora em certos casos, como no Brasil, até pudesse funcionar como tal), e nem visa diminuir o crime; é, pura e simplesmente, um ato de vingança. Também apregoam (os mesmos opositores) a possibilidade e a necessidade de se reeducar o criminoso, trazê-lo de volta ao convívio da sociedade. Seria nobre, se já não estivesse óbvio que com a maioria absoluta dos delinquentes mais perigosos isso é altamente improvável, senão impossível. Daí a necessidade, segundo os que apóiam a pena, de se purgar a sociedade destes determinados indivíduos, que acabariam representando um complicado e dispendioso ônus social ao Estado. Na teoria; infelizmente, as imperfeições da prática acabam fazendo com que a execução saia mais cara do que mantê-lo vivo. Ainda assim, é inevitável pensar... quem ganharia com a manutenção da vida de Timothy McVeigh? Apenas sua própria família, talvez. Talvez. Quem perderia com isso? Todos, que seriam obrigados a custear sua vida, alimentá-lo, vesti-lo, pagar sua água e luz, assistir suas entrevistas em inúmeros programas de TV, jornais e revistas, sem que ele trouxesse benefício algum à sociedade, e ainda um dia acabasse solto pela combinação explosiva de algum juiz pulha e um promotor sanguessuga. Existe a opção de obrigar o preso a trabalhar, o que atenuaria seu custo à sociedade; mas longe de diminuir o risco de sua soltura, isso iria até aumentá-lo, pois quase sempre os empregos oferecidos aos detentos vêm acompanhados de inúmeros recursos para abreviação de suas penas. Chega a me dar arrepios pensar no que um sujeito como McVeigh poderia fazer se estivesse vivo, como por exemplo, soltar outra bomba por aí, ou, pior, escrever um livro. Mas a hipocrisia, mascarada pelo sentimento cristão, se arvora em defesa de sua pobre alma, e brada contra os executores, como se fossem eles os responsáveis por todas as vidas perdidas no massacre de Oklahoma.
É essa mesma hipocrisia que resolveu dar as caras em nosso país tropical, depois de uma série de acontecimentos recentes... acontecimentos estes que demostraram, em diversos pontos, alguma relação com o assunto apresentado acima. Claro, com inúmeras diferenças, e peculiaridades, afinal, ¡todavía estamos en Brasil!
O coronel Ubiratan Guimarães, da Polícia Militar, está indo a julgamento, por ter comandado a invasão (seguindo ordem do então governador de SP, Fleury) do presídio do Carandiru, em São Paulo, em outubro de 1992. Cento e onze presos morreram durante uma invasão da tropa de choque da PM ao presídio, tomado por detentos rebelados que ameaçavam uma fuga em massa. Usando de força inegavelmente enérgica, a tropa entrou e debelou a rebelião com cães, gases, bombas e armas. Vários dos presos apresentavam, segundo a perícia, sinais de espancamento e execução, muitos com tiros na cabeça e nuca, à queima-roupa. Segundo a perícia. Porque só quem estava lá sabe o que realmente ocorreu naquele dia, à hora da invasão. Alguns contam de presos ameaçando injetar com seringas sangue contaminado nos PMs, caso a invasão ocorresse. As luzes foram cortadas pelos detentos, que quebraram canos de água para inundar os pavilhões e dificultar a entrada da tropa, e inúmeros objetos eram arremessados contra o batalhão de choque à medida que eles passavam pelos corredores. Havia uma tremenda pressão, da parte da imprensa paulista, vermelha e marrom, e dos familiares dos presos, contra os policiais. Não é difícil imaginar o turbilhão que devia estar passando cada um daqueles soldados, pago com salário de inanição e mais mal-treinado que um guerrilheiro de Serra Leoa. As fotos dos corpos empilhados e da destruição generalizada dentro do presídio ajudaram a transformar a polícia nos vilões: chegaram a comparar o Carandiru a Auschwitz (!), como se as pessoas que foram massacradas em Auschwitz tivessem cometido algum delito, e estivessem se rebelando quando foram executadas. Não, foram mortas apenas por pertencerem a uma raça diferente, por viverem no país errado na época errada - e esse é o absurdo horrível e chocante de Auschwitz. Não é o caso dos mortos no Carandiru. Argumenta-se que muitos eram pais de família, deixaram mulheres e filhos, que alguns quantos poderiam estar ali presos inocentemente, e que outros tantos eram, como se costuma dizer, "ladrões de galinha". Mas é fato que lá não morreu nenhum Jean Valjean. Dificilmente alguém vai parar no Carandiru por roubar um pedaço de pão para alimentar seus filhos famintos. Todos tinham, sim, em comum uma vida miserável e sem perspectiva, cortesia de nosso país - mas a maioria ali simplesmente escolheu o caminho do crime por ele ser o mais fácil, não por ele ser o único que se lhes apresentou. E, o que é pior, muitas das famílias que se põem a xingar e apedrejar os policiais nas portas de presídio já se beneficiaram daquilo que seus parentes-detentos roubaram de outras pessoas, frequentemente após eles terem matado as vítimas de seus assaltos. Isso é mais comum do que se imagina. Fica difícil crucificar um policial, quando ele se confronta com gente assim, e é obrigado a pagar violência com violência. Ainda mais quando penso que, muitos daqueles que foram mortos, poderiam, caso estivessem vivos, estar apontando um cano de revólver na minha cabeça, ou de alguém da minha família, num cruzamento qualquer desta maldita cidade.
Não escrevo no entanto um panfleto pregando a execução sumária de assassinos, estupradores e da escória em geral; não tenho a menor intenção de envolver-me em assuntos jurídicos e legislativos, e faltam-me para isso vocação e vontade, graças a Deus. Mas é evidente que numa situação de guerra fica difícil saber quem está certo. Nossos presídios se tornaram exatamente isso, praças de guerra. Todos já ouviram falar da facilidade com que se coloca uma arma nas prisões brasileiras, todos já ouvimos falar da organização que eles possuem, com celulares, hierarquias internas que mandam até mesmo nos carcereiros, e centrais telefônicas coordenando tudo de fora. Chamá-los de pessoas indefesas é um insulto à inteligência de qualquer ser medianamente capacitado a pensar. A polícia se excedeu? Não resta dúvida, mas desafio qualquer um a mostrar uma guerra onde não foram cometidos excessos. Havia a necessidade, no entanto, da manutenção da ordem, dever e obrigação da polícia, perante pessoas que estavam violando acintosa e abusivamente seu papel na sociedade, depois de já terem sido condenados a pagar por seus erros. Deveria a polícia assistir à rebelião, e à subsequente fuga, impassível? Creio que não, e a força foi a única saída.

Madamina, il cattalogo è questo...
Acho que finalmente me dei conta, como Beethoven me havia dito por meio dalgum relato dum contemporâneo seu, da imoralidade de Mozart, em meio à sua grandeza: quando o Leporello, enumerando as amantes de D. Giovanni, na área do catálogo, lista as qualidades delas num crescendo fantasticamente pomposo, imponente, que nada tem a ver com "no inverno, a gordinha; no verão, a magrinha" ou "non si picca, se sia ricca, se sia brutta, se sia bella." Talvez Beethoven não encarasse isto com o bom humor que eu estou mais que disposto a ter; percebo uma piscadinha de olho de Mozart no "maestosa" em que culmina este crescendo de Leporello - a palavra não poderia descrever melhor a música cantada.
A ária é extremamente "brincalhona", digamos assim, beirando o frívolo. "Se vestir uma saia, já sabe o que ele faz", termina avisando Leporello. Alguns tenores - que ridículo - dão uma risadinha ao cantar estas linhas, aumentando exponencia e lamentavelmente a vulgaridade do momento. Bernard Shaw descreveu um da sua época que, ao cantar estes versos cutucava maliciosamente com o cotovelo Donna Elvira, que está em cena a seu lado. Good God!

Últimas palavras dum gênio em seu leito de morte
Schwarzspanienhaus, Viena - 24 de março, 1827.
"Plaudite, amici, comœdia finita est", diz Beethoven, já nas últimas, como diria o scumbag, a seu amigo íntimo Schindler e Hans von Breuning, que estavam acompanhando-o em seu quarto. Mais tarde, chegaram alguns vinhos do Reno cuja chegada ele aguardava ansiosamente, enviados por um aristocrata de Bonn. Ao vê-las, Ludwig suspirou: "pena, pena - tarde demais!" e calou-se. Caiu num coma nesta mesma noite, da qual só acordou no dia 26. Então, por um breve período, durante uma tempestade, uma nevasca, ele abriu os olhos, levantou sua mão direita e fechou os dedos, apertando-a num punho fechado. Após alguns segundos a mão caiu, ruidosamente, sobre o lençol. Estava morto.

"A hora da partida chegou, e devemos seguir nossos caminhos - eu, morrer, e vocês, viverem. Qual é melhor, só Deus sabe." Sócrates, em seu último discurso.



Rafael Azevedo
São Paulo, 29/6/2001

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