Mudei radicalmente minha opinião sobre os poetas concretos. Agora, também quero ser um deles: deve ser uma delícia fazer auto-elogios sem nenhum escrúpulo de consciência, ser "de vanguarda" por 50 anos e viver cercado por gostosíssimas estudantes de semiótica. Antes, eu acreditava que o concretismo era uma espécie de clube privê de cujas vantagens eu não podia desfrutar. Que crasso preconceito o meu. Súbito descobri que, para exibir orgulhosamente meu título de sócio do clubinho concreto, bastava compor poemas com o mínimo de palavras e o máximo de exegese. E, como já mandei a modéstia às favas, asseguro que na primeira tentativa alcancei as alturas da obra-prima. Mas julguem vocês mesmos. Primeiro, o poema:
CÚ
Não perceberam a genialidade da coisa? Ah, claro, vocês não têm as referências necessárias. Então aqui vai a análise, para que vocês captem a multiplicidade de sentidos dessa maravilha.
1) Em português, palavras como "cu", monossílabo tônico terminado em U, não levam acento. Sua inclusão, portanto, é uma transgressão da norma gramatical que visa ressaltar o aspecto ideogrâmico do CÚ, com base na poesia de Pound e nos estudos de Fenollosa. Assim é que o acento sobre a letra U assume caráter fálico e reproduz iconicamente uma penetração anal, fazendo com que o poema possa ser lido como "pau no cu".
2) O próprio desenho das letras permite outras interpretações igualmente interessantíssimas. O C representa o sujeito-curvado-sobre-si-mesmo, alheio a tudo aquilo que não seja sua eterna contemplação narcísica. O U, por sua vez, é uma letra aberta para cima -imagem do sujeito ávido pelo contato com o mundo exterior e buscando compensar a falta que, no entanto, o constitui, como diria Jacques Lacan. É por essa abertura ínfima que o acento-pênis transgressor se introduz. Contra a natureza e contra as leis da gramática, o CÚ se afirma como sujeito subversivo, revolucionário e, sobretudo, baitola.
3) O poema também se inspira nos ready-mades de Marcel Duchamp. Assim como um penico pode ser exposto num museu, também o CÚ, clássico grafito de banheiro, pode ser elevado à categoria de poesia e questionar de maneira instigante (eu tinha que usar esse adjetivo) as fronteiras entre arte e antiarte. Outra influência evidente é Mallarmé, com seu poema "Un Coup de Dés Jamais n'Abolira Le Hasard": a palavra "coup", como vocês devem saber, pronuncia-se "cu", e a poesia da modernidade jamais teria sido a mesma sem o "coup" do Mallarmé.
Vou ligar amanhã mesmo para Haroldo, Augusto ou Décio para exigir minha carteirinha de sócio. E ai deles se não gostarem da minha obra-prima. Que enfiem o dedo nela e rasguem.
Haroldão, o papai noel concretista
(fábula natalina extemporânea, mas altamente moral)
Passa das quatro da manhã. As crianças, antes ansiosas, estão francamente irritadas: nenhuma movimentação na chaminé, nenhum presente dentro das meias, nenhum sinal da presença de Papai Noel naquele cenário dos Waltons. Eis que John Boy e Mary Ellen ouvem barulhos estranhos do lado de fora da casa. Vão averiguar e encontram isto: um sujeito careca tocando cítara e ele, Santa Claus, o bom velhinho, dizendo coisas como "e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço". John e Mary se aproximam dele.
- Você é mesmo o Papai Noel?
- Sim, amiguinhos. Ou não. Nãosim. Tudo nascemorrenasce, desmorre, desnasce.
- E cadê o trenó? As renas? Aquela risada "ho-ho-ho"? E os nossos presentes?
- Trenó, renas e "ho-ho-ho" são bobagens passadistas, coisas de Papais Noéis parnasianos. Também troquei seus presentes convencionais por coisas mais vanguardistas. Que tal este poema verbivocovisual? Ou este quebra-cabeças popcreto? Talvez vocês prefiram brincar de colidouescapo ou vestir este lindo parangolé.
- Putz, que lixo. A gente não gostou de nada disso, não.
- Ah, meu santo Ezra Pound, que crianças mais enjoadinhas. Já sei... tenho aqui um presente que vocês vão adorar.
Abre seu saco e retira dele o último CD de Arnaldo Antunes. É imediatamente atacado pelas crianças a socos, pontapés, mordidas e dedadas nos olhos. De nada adiantam seus gritos de "socorro", "seus Gullarzinhos de merda" e "seus filhotes de Wilson Martins". Como o citarista deu no pé, John Boy e Mary Ellen se apossam do instrumento e dão uma kabongada na nuca do Papai Noel concretista. O acorde produzido é mi bemol.
Moral da história: Não acredite em nenhum Papai Noel que faça o seu saco ficar mais cheio que o dele.
Manual de redação do tio Ruy
Se você, amiguinho, escolheu ser jornalista, é por definição um caso perdido. Mas, se você ainda está em início de carreira -e, por favor, não tome essa expressão literalmente; dizem que estraga a cartilagem nasal-, é possível que seus dois neurônios, Hans e Fritz, ainda não tenham sido irreversivelmente deteriorados. Se é esse o caso, aqui vão algumas dicas estilísticas do tio Ruy: 1) Não use o adjetivo "seminal", a não ser em referências ao seu saco (e, eventualmente, ao dos leitores). Só os testículos são verdadeiramente seminais. 2) "Círculo íntimo" é cu. Nada mais, nada menos. Escrever que uma informação foi apurada "no círculo íntimo de Fulano de Tal" é deselegantemente proctológico, embora possa ter algo de verdadeiro se Fulano de Tal for o Agnaldo Timóteo. 3) Você não é Flaubert. Escrever um texto muderno e cheio de insights sobre os buracos da rua não vai torná-lo Flaubert. E que isso não seja entendido como uma defesa da mediocridade. É só prevenção contra a subliteratice, vício oposto e complementar ao do jornalismo-objetivo-e-sem-graça.
Coisas que Ruy Goiaba jamais fará 1) Usar uma daquelas camisetas cretinas da Forum ("Luta", "Respeito" e sei lá que cazzo), fazendo o que o Zeitgeist chama, muito adequadamente, de "cara de consciência". Eu só vestiria uma coisa dessas se o garoto-propaganda fosse o Costinha e na camiseta estivesse escrito "Fodelança". 2) Ir ao coquetel de lançamento de um desses filmes cheios de "realidade brasileira", como "Carandiru", cuja estréia faço questão de ignorar. Sim, pode ser divertido tomar um vinhozinho antes do filme, sensibilizar-se com a tal realidade e depois jantar no Fasano. Mas vou ficar mesmo em casa, envolvido numa atividade cultural bem mais interessante: cortar as unhas dos pés ouvindo Nelson Gonçalves.
Sugestões para um mundo mais melhor
Devia haver uma butique chamada Chez Guevara. Seria uma Daslu para intelectuais orgânicos: modelitos chiquérrimos de farda usados por Fidel, Hugo-lá-vem-o-Chávez e aquele pessoal muito féchom das Farc, paredones no lugar de provadores e música ambiente by Pablo Milanés. E você ainda seria atendido por vendedoras com doutorado em história pela USP. Luxo!
Também acho que alguém deveria lançar o "Livro Vermelho de Receitas de Mao Tsé-tung", com pratos simples e saborosos como a sopa de miolos à Pol Pot. (É claro: quem quiser agradar a todos os paladares ideológicos poderá preparar um curdo ao molho pardo ou recorrer a Plínio Salgado e suas receitas de arroz integralista.)
Adendo: O Nelson sugere que a butique também venda camisetas de John Lênin. E eu acrescentaria, nas costas, um bom slogan para os beberrões que não deixam de se preocupar com a paz mundial: "All we are saying is give piss a chance", o refrão mais cantado nas filas de banheiro em todo o mundo.
Por que não sou féchom
Estava eu folheando uns livros lá na Livraria Cultura do xópim Bicha-Loucos, aqui em São Paulo, e eis que o estilista megaféchom Fause Haten passa perto de mim. O que me chamou a atenção foram as roupas dele -mas, curiosamente, não por uma presumível extravagância. O cara vestia um jeans bem detonado e um agasalho cinza, daqueles com capuz e cordõezinhos, que devia ser o mesmo usado pelo Renato Russo naquele clipe de "Será" (apenas uns 20 anos mais velho). Pensei comigo: porra, essa era a roupa que eu usava pra ir à escola quando estava na quinta série. Usava, não; queria usar, mas era impedido de fazê-lo pelos cascudos de dona Genibalda Goiaba, a senhora minha mãe ("Tira já essa roupa imunda, moleque! Filho meu não vai pra escola molambento!"). Disso se conclui que eu já era féchom com 11 anos e que, graças aos maus bofes da minha mãe, o mundo perdeu um grande estilista. Sorte do mundo.
Montaigne na clinica de lipoaspiração
"Quem em Paris não ouviu falar daquela [mulher] que se fez esfolar somente para adquirir a tez mais fresca de uma nova pele? Há as que mandaram arrancar dentes vivos e sadios para assim tornar a voz mais lânguida e mais cheia, ou para dispô-los em melhor ordem. Quantos exemplos do desprezo pela dor temos nesse sexo? O que não podem elas? O que temem? (...) Vi engolirem areia, cinzas e esforçarem-se propositalmente para arruinar o estômago a fim de adquirir a cor pálida. Para formar um corpo bem espanholado, que tormento não sofrem elas, comprimidas e amolgadas, com grandes talhos nos flancos, até a carne viva? E mesmo algumas vezes chegam a morrer disso."
(Trecho do ensaio "Que o gosto dos bens e dos males depende em boa parte da opinião que temos deles", incluído no Livro I e escrito por volta de 1572. A tradução é de Rosemary Costhek Abílio. Quem ousará dizer que o gajo não é atualíssimo?)
Nota do Editor
Ruy Goiaba assina o blog puragoiaba, onde estes textos foram originalmente publicados.
Adorei o "Por que não sou féchom"...rs. Parabéns!
O que mais admiro na poesia concreta é que foi abolida aquela leitura tradicional, cheia de versos. E poder utilizar formas variadas de escrever e até mesmo formar efeitos visuais, pra mim foi maravilhoso. Aliás, é o que mais gosto de fazer desde os tempos da faculdade, jogar com as palavras! Se puder visite meu blog, tenho postado algumas lá. Adoraria sua opinião.
Bjs e sucesso...Civana ;)