A editora W11/Francis relançou este ano a obra Harmada, do escritor João Gilberto Noll (não vou dizer "escritor gaúcho", porque artista que se preze não tem pátria). Pelo que parece, vai relançar todos os seus livros. É uma empreitada editorial no mínimo respeitável, pois trata-se de um autor que vem construindo uma obra de inegável valor literário.
Lendo este romance já se pode perceber uma transformação na literatura de João Gilberto Noll, que parte de uma experiência temática visceral, com seu romance "A Fúria do Corpo", e em seguida, desloca sua experiência-limite do tema para o interior da própria linguagem.
Em "A Fúria do Corpo" o escritor buscava romper com todas as estruturas opressivas do mundo que haviam se infiltrado em sua existência, para sair dali como um homem radicalmente livre. Uma espécie de revolta erótico-existêncial guiava seu personagem e o transformaria, nos próximos romances, numa espécie marginal de "quieto animal da esquina".
Agora estamos diante de "Harmada". No livro um ex-ator vaga sem rumo, experimentando sua liberdade de estar em qualquer lugar, fazendo qualquer coisa como, por exemplo, tomar um banho de lama e voltar para seus aposentos totalmente sujo e fétido ou encontrar um bando de atores viajantes e mergulhar com eles em uma orgia sexual.
No momento em que decide refugiar-se do mundo, escolhe um asilo de mendigos, onde consola-se com a idéia de dirigir uma peça de teatro.
O que importa é como Noll descreve as cenas no seu romance, nos tornando cúmplices de suas aventuras esquizofrênicas. Tal como seu personagem, totalmente inusitado em suas vivências, a linguagem que descreve estas vivências é construída de uma forma também desnorteante. Sentimos desejo de entender os propósitos de seu personagem, encontrar alguma âncora que os segure dentro de uma significação, mas eles nos escapam, pois não retém nada do que experimentam. Os encontros com as pessoas, com as paisagens ou com as amantes são fortuitos. Não há amarração, desejo de constituição de laços, sejam eles afetivos ou sociais. Os fiapos de informações que pensamos ser um enredo não existem, pois não se amarram. Sendo assim, como descrever um enredo que não se quer enredo? Não resta outra coisa que tentar entender, talvez, o maior propósito de Noll: criar uma linguagem esquizóide.
O psicanalista Wilhelm Reich escreveu um dos mais belos capítulos sobre a esquizofrenia, no seu livro "Análise do Caráter", num capítulo denominado "O desdobramento esquizofrênico". Ali, de uma forma respeitosa, ele aponta as características cósmicas das experiências dos esquizóides. Chama a atenção para a existência de um artista como Van Gogh, que transformou sua experiência cósmica em forma artística. Este tipo de experiência é comum nos esquizofrênicos. Em Noll acabamos sentindo um pouco deste "desdobramento esquizofrênico", nas experiências/vivências do seu personagem, mergulhado de uma forma despreocupada, irracional e profunda nos fatos que o ligam ao mundo: ouvir uma música, tocar no corpo de uma mulher, sentir ódio, beber desrregradamente, deslocar-se sem rumo (Van Gogh não foi também um andante desnorteado?).
Para o leitor ter uma gota destas coisas que falo, cito uma pequena passagem: "Eu praticamente vivia a caminhar, só queria andar pelas ruas, geralmente os passos apressados para simular afazeres de cidadão, e você aí resolveu me seguir para ver aonde é que eu ia, e acabou descobrindo que eu não ia a lugar nenhum, que eu só sabia caminhar a esmo pelas ruas o dia inteiro...".
O personagem central de "Harmada" está mergulhado na provisoriedade dos acontecimentos e das imagens sempre fugidias do mundo. Noll descreve-o a partir de uma mistura estados de consciência e ações no mundo, criando, desse modo, uma permutabilidade entre realidade e irrealidade, entre esfera objetiva e subjetiva, mas partindo de experimentos existenciais sem amarras no real.
Por isso, sua narrativa nega a progressão contínua de uma única ação, de um pensamento ou de uma situação uniforme; em vez disso reúne, de maneira caleidoscópica, impressões pluralizadas. Trata-se de um processo no qual personagem e realidade se interpenetram e no qual o centro das cogitações é o ser humano desterritorizado; o que importa é que este processo aponte para sentimentos e percepções caóticas, para a permutabilidade de todos os encontros humanos, para o caráter maquinal da existência e seus rebocos inúteis.
Para tanto, a estrutura linear da narrativa foi destruída pela concomitância dos acontecimentos e pela multiplicidade dos espaços do mundo representado pelo romance; assim, a realidade apresentada já não corresponde à aparência exterior nem tampouco à percepção objetiva, e sim à realidade "flutuante", na qual há muito reconhecemos o nosso verdadeiro meio ambiente existencial.
Sua obra se encaixa nas buscas da literatura mais importante dos últimos tempos (pense-se, por exemplo, em Beckett), onde a narrativa não se vincula a determinado desenvolvimento, nem a uma evolução temática definida e, por isso mesmo, não precisa de um começo fixo e de uma conclusão lógica irrefutável.
As personagens de "Harmada", por mais importantes que estas sejam, afiguram-se estranhas e anônimas. Identidade, posição e aparência constituem características sem importância. O autor apresenta os seres humanos num instante em que ainda não se tornaram realmente personagens de um romance (nem vão se tornar nunca). Elas são apresentadas e desaparecem antes que possamos formar uma imagem completa a seu respeito. As pessoas em sua obra, se é que podem ser consideradas "pessoas", parecem sombras, sem uma pré-história pessoal, marcando o caráter indefinível de suas existências.
O que marca a novela são personagens sem história, cenas entre pedaços de ruínas, personalidades incompletas, figuras que aparecem/desaparecem sem se projetar, sem se despedir. As características pessoais transformam-se em algo anônimo que já não pode ser captado ou diferenciado; é o "inominável" beckettiano.
Uma nervosidade na própria escrita, uma espécie de dança na ponta de uma lança infernal, sem sabermos ao certo de onde partimos ou para onde estamos indo, é o que caracteriza o Noll de "Harmada".
O "desconcerto" que ataca muitos dos críticos de Noll, que se sentem como "se lhes faltasse terra debaixo dos pés", se explica por isso. Uma linguagem "flutuante" não pode ser entendida de uma perspectiva lógico-racional. Na literatura de Noll trata-se de uma poética que não teme o risco dos abismos propostos pela realidade do exercício artístico, fazendo do mergulho no desconhecido a revelação do nosso mundo conhecido.
Para ir além
O escritor João Gilberto Noll nasceu em Porto Alegre em 1946. Recebeu três vezes o prêmio Jabuti. É autor de O Cego e a Dançarina (contos), A Fúria do Corpo, Bandoleiros, Rastros de Verão, Hotel Atlântico, O Quieto Animal da Esquina, A Céu Aberto, Canoas e Marolas, Berkeley em Bellagio e Harmada.
Será mesmo que artista que se preze não tem pátria? Sei não, mas fica meio difícil separar James Joyce de Dublin (Irlanda) ou Marcel Proust de Combray (França). A não ser...ah, sim, em se tratando de João Gilberto Noll é menos pior que se ressalte a cidade de origem.
Caro Fábio, é bobagem atribuir a qualidade literára de um autor, ou mesmo a riqueza de sua temática, ao fato do mesmo ter nascido em tal ou qual lugar. a obra de Joyce, enquanto fato literário, não tem nada a ver com a irlanda e mesmo Proust, embora descreva seus passeios pelas redondezas de paris, descreve na verdade seu mundo interior, projetado nas paisagens que via. portanto, literatura, ou melhor, o fato literário, não tem relação com nacionalidade.
abraço,
jardel
Correto, caro Jardel; contudo, pensemos em João Guimarães Rosa. Por mais que seus escritos descrevam o mundo interior, é inegável que os seus textos passam a fazer um enorme sentido quando conhecemos o sertão mineiro. Assim, o autor só é universal quando ele é regional. Estranho? Pois o próprio João Gilberto Noll afirmou isso em uma entrevista, na ocasião do lançamento livro "Berkeley em Bellagio".
Abraços,
Fabio
Caro Fabio,
não é também estranho que o que é pior no "grande sertão..." seja justamente as partes descritivas que nos remetem diretamente ao "regional/local", enquanto o que é melhor estrapola tal "localização"?
Você deve saber também que boa parte do que guimarães rosa capturou do sertão foi "falseado" em uma lingua nova, inventada por ele, justamente por descrer na idéia de "original/regional"?
nisso ele copiou Joyce, mal e porcamente.
abraço,
jardel
Caro Fabio, outra coisa, uma amiga minha, alemã, leu "grande sertão...", sem nenhum conhecimento da região onde se passa o livro, no entanto achou o livro extremamente filosófico, chegando a relacioná-lo com algumas reflexões de pensadores alemães. nesse ponto ela estava certa, pois Guimarães falava alemão e lia autores alemães, que estão mais vivos dentro do livro que o "sertão" de minas. A próprósito, sou mineiro e tenho um parente que é personagem de guimarães rosa. é o Manuelzão, morto pouco tempo atrás.
abraço,
jardel
Caro Jadel, duas coisas: citei "Grande Sertão" como exemplo, mas, na verdade, todos os textos de Guimarães Rosa são permeados por essa ambivalência regional/universal. As "Primeiras Estórias" são um bom exemplo.
Em relação à influência que Guimarães Rosa tinha de escritores alemães, ora, isso é altamente reconhecível em outros autores. Das "Memórias Póstumas de Bras Cubas",Machado de Assis (Tristam Shandy, de Lawrence Sterne) à "Crônica da Morte Anunciada", Gabriel Garcia Marquez("A metamorfose", de Kafka). Nesse último exemplo até o primeiro parágrafo é parecido. Abraços, Fabio
Caros colegas Jardel e Fábio:
Não importa se é regional ou universal, mas sim o modo (como) que os grandes escritores transformam o particular no universal e o universal no particular. Portanto, podemos reconhecer o local (sem ufanismo), mas sem perder o universal e vice-versa. Guimarâes Rosa tem sertão mineiro, Joyce tem Dublin, Proust tem Paris, mas nada disso diminui o valor de suas obras, pelo contrário.
Jardel:
me desculpe, mas Guimarâes Rosa não copiou "porcamente" Joyce. São linguagens e propostas diferentes. Rosa pegou muito da linguagem oral, do que ouvia e foi transformando. Joyce, ao contrário, procurou realmente um modo próprio de reinventar a língua inglesa. Mas é claro que sabia muito do arcaico e do moderno da sua língua, pois são os próprios estudiosos que dizem isso, ou seja, como Joyce sabia mesclar a sua língua. É isso
grande abraço
mário
caro mario alex, obrigado pelo comentário. mas ainda continuo achando que Joyce transcende Dublin mais do que G. Rosa transcende seu "sertão". mais que isso, Joyce traz para dentro de sua literatura universos culturais bem mais amplos que Guimarães Rosa. e também novidades mais amplas ainda que Rosa. é uma questão de tamanho. seria algo como Picasso e Portinari.
abraço,
jardel
caro jardel. gostei muito de seu texto sobre o noll, mas sinceramente me sensibilizou muito este seu julgamento sobre guimarães rosa e como colocas em nível superior hierarquicamente james joyce. a poética de guimarães rosa é verdadeiramente sublime, profunda e nos toca a alma de maneira brutal e definitiva, sobretudo da obra-prima, Grande Sertão Veredas. Há anos venho tentando ler a tradução de Ulisses do Houaisse e, francamente, prefiro acreditar que o original em inglês (o qual estou esperando para ler num pub da irlanda, quando meu bolso o permitir) deve realmente ser absolutamente poético e inventivo, porque pelo que eu vi na tradução me pareceu um amontoado pretensioso e afetado de inovações literárias já totalmente desgastadas. Enquanto isso, o nosso Rosa, com seu épico universal (e tão regional!) nos paraliza e nos transforma eternamente em brasileiros... não sou lá muito fã de patriotismo, mas esta sua falta de amor pela literatura nacional me soa um pouco sacrílega, assim como um inglês a desprezar shakespeare em prol de um novo best-seller americano.
Caro Miguel, obrigado pelos comentários. Mas, evidentemente, discordo do que você disse de Joyce. Sua idéia de que a obra de joyce é um amontoado de inovaçõe sliterárias pretenciosas é injusta, principalmente se considerarmos o momento em que a obra surgiu totalmente em sintonia com, por exemplo, as inovações de picasso em artes plásticas e na música com stravinsky. isso par anão falar na dança e o surgimento da linguagem cinematográfica. Mas a questão não é diminuir Guimarães Rosa, mas ver as limitações da pretensa inovação de Guimarães rosa. ele pode ser inovador no brasil, mas estava atrasado pelo menos 50 anos em relação à europa. mas, ainda asim, é um escritor genial. no brasil as coisas são estranhas: por exemplo, eu acho a obra da hilda hilst extremamente superior a obra de clarice lispector. a última perto da linguagem da hilda parece provinciana, psicanalítica, sociológica, pretensamente feminista/feminina. e o universo da linguagem, como fica?
abraço,
jardel
Caro Jardel,
desculpe a intransigente intromissão, porém creio que as propostas de Hilda Hilst e de Clarice Lispector são distintas. Dessa forma, torna-se inviável uma comparação desse gênero (provinciana x revolucionária da linguagem). Hilda envereda por um caminho claramente mais provocador e polêmico, como faz em "A Obscena Senhora D." (característica que em nada desabona sua obra). Já Clarice é a narrativa da sensibilidade, uma escritora que possui o olhar da poiésis que a capacita extrair de um simples relato do cotidiano um novo panorama para os sentidos e uma nova visão das coisas - como ocorre no conto "Do amor".
Abraços,
Fábio