Parece que nós, brasileiros, temos um talento especial para transformar limão em limonada. Nossas manifestações culturais mais ricas nasceram no bojo da opressão, da exclusão e da crueldade. A feijoada, o samba e o candomblé, por exemplo, são frutos de um sistema escravista que ajudou a formar o perfil atual do Brasil. Pasteurizados, romantizados e devolvidos ao mercado, esses produtos deixam de ser casca de ferida para se tornarem símbolos da nossa riqueza cultural. Passam a fazer parte de um conjunto de elementos que formam o que se chama de "a cara do Brasil" e que alimentam outros produtos da nossa cultura. É esse também o caso do "malandro", um dos mais famosos arquétipos cariocas. Mais do que um personagem, o malandro condensa em suas características o contexto social do Rio de Janeiro de fins do século XIX e início do século XX. Por sua importância histórica e antropológica, mereceu um livro inteiro só sobre ele, escrito pelo jornalista Luiz Noronha e lançado em junho passado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, em parceria com a editora Relume Dumará: Malandros: notícias de um submundo distante (2003).
O malandro é uma figura que só poderia ter nascido em uma cidade como o Rio de Janeiro do começo da República. Enquanto capital, o Rio era o centro das manifestações políticas, sociais e culturais do país. Uma cidade grande, com todos os problemas inerentes a essa condição: superpopulação, desemprego, insalubridade. Noronha conta como o processo de transição da escravatura para o capitalismo e do império para a república, teve como sobras uma massa de pobres de diferentes estilos. Desempregados, ex-escravos, imigrantes de outros países, migrantes nordestinos fugindo da seca, ambulantes e desocupados formavam um conjunto de excluídos que se espremiam pelos cortiços e pelas ruas da cidade, que não combinavam com os novos tempos da belle époque carioca. No afã de reformar a cidade para atender ao estilo de vida dos novos capitalistas e dos remanescentes da aristocracia, o presidente Rodrigues Alves empossou como prefeito o engenheiro Francisco Pereira Passos, que tinha assistido à cirurgia realizada em Paris pelo Barão Haussman e que transformou a velha capital medieval na Cidade Luz.
A operação realizada por Passos no centro do Rio foi muito mais de plástica do que propriamente de cura. Ruas foram alargadas e abertas, os cortiços foram destruídos e toda uma vida que acontecia nos espaços públicos passou a ser regulada por novas leis. Apesar de desalojadas, as pessoas não foram realocadas. Nascem as favelas e os bairros pobres vão ficando cada vez mais afastados no novo Rio de Janeiro. Como se não bastasse, ainda chamam um doido que dizia poder prevenir a febre amarela dando uma injeção contendo o vírus da doença. A revolta contra a vacina foi muito mais do que uma rejeição aos métodos sanitários do médico Oswaldo Cruz para controlar a epidemia que se alastrava pelos cortiços da cidade. A campanha de vacinação foi o estopim que fez explodir a indignação da massa de excluídos gerada pela urbanização.
Ao mesmo tempo, o Rio dessa época é um caldeirão cultural em ebulição. Cafés, salões, bares e cinemas nutrem uma cidade ansiosa por lazer e diversão. Existem lugares para todas as classes sociais e para todos os gostos. Aumentam as casas de jogo e prostituição. A capital da república recebe gente de todos os cantos, tipos que ajudam a forjar as novas manifestações culturais. O malandro carioca é fruto desse processo de exclusão social e explosão cultural.
O malandro era um desocupado que vivia de bicos ou serviços de "proteção" para prostitutas ou moradores e comerciantes de determinada região. Ia dormir já com o sol, acordava ao meio-dia e saía para a rua. Carregava sempre consigo o chapéu e a navalha. Os malandros faziam parte de organizações do submundo urbano que tinham origem nas maltas de capoeiristas vindas da Bahia. A capoeira assumiu um aspecto profissional, com hierarquia e regras bem definidas até no que se referia a roupas e atitudes. São essas regras que caracterizaram o malandro que aparece tão romanticamente nos filmes, na literatura e nas músicas brasileiras.
O malandro nunca usava arma de fogo, só navalha, que sempre carregava no bolso fundo de sua calça branca larga e de boca estreita, junto com o dinheiro, baralho de cartas marcadas e fumo. O paletó do malandro deveria estar sempre aberto. Compunham ainda o figurino a camisa e o lenço de seda que, segundo a lenda, cegava o fio da navalha e a botina de bico fino. O jeito de capoeirista fica evidente no gingado do andar, que permite rapidamente a posição de combate. Além da seda, o chapéu na mão esquerda também servia como defesa nas lutas.
O livro de Noronha começa com uma entrevista com Madame Satã, o mais famoso dos malandros cariocas. A entrevista foi feita pelo pessoal do Pasquim em 1971 com o então esquecido bandido. É a partir dessa entrevista que se redescobre o malandro, agora só como mito. As transformações sofridas pelo país na década de 1940 fizeram com que a figura do boêmio desocupado e perigoso desaparecesse, dando origem a bandidos menos românticos. O malandro ficou vivo somente nas letras das músicas, nas crônicas e nos filmes, ajudando a alimentar o imaginário brasileiro. Do malandro restou apenas o figurino e a nostalgia de um outro Rio de Janeiro. Esquecemos que o malandro, assim como outras figuras da mitologia brasileira, é a limonada feita dos acres limões da história do nosso país.