COLUNAS
Segunda-feira,
18/8/2003
Um brasileiro no Uzbequistão (IV)
Arcano9
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A muralha delimitando Ichon-Qala, o centro velho de Khiva
Khiva, 03.06
O táxi atravessou parte da cidade - seca, árida, solar - e, de repente, nos deparamos com as muralhas de barro. São muralhas incomuns, as de Khiva. Como todos as demais edificações do seu centro histórico, são de cor areia, feitas com uma lama misturada com feno. Altas, sólidas, grossas, as muralhas delimitam uma máquina do tempo no meio de uma cidade que seria, caso contrário, um nada na luz implacável do meio-dia. Em curvas, côncavas e convexas, elas são algo grandioso. Um monumento à vitória humana sobre os quilômetros infinitos de areia fervente e estepes rachadas dos desertos do Kyzylkum e do Karakum, entre os russos e os persas, entre os mongóis e os turcos, entre ontem e amanhã.
Khiva, ou melhor, o seu centro histórico, chamado de Ichon-Qala, foi a capital de um império que muito orgulha os locais. Mas o orgulho vem junto com a vergonha, com o medo, com sentimentos negativos que estão tão profundamente enraizados que já não é mais possível definir de que forma eles se fazem presentes no dia-a-dia. As muralhas são formidáveis, mas são cruéis. Era dentro delas que os nômades turcomanos, vindos do sul, negociavam os pobres coitados que, durante séculos, cometiam o erro de se aventurar por estas terras secas, tentando seguir os passos de Alexandre, o Grande. Era dentro delas que nômades cazaques faziam o mesmo. Era de dentro dessas muralhas que o rei, ou khan - sanguinário ou sábio na sua justiça diária, condenando seus réus-vítimas a mortes indizíveis - comandou uma terra cujos primeiros registros foram os do próprio pai da história, o grego Heródoto. Nos seus tempos, Khiva fazia parte de uma província persa - tão distante, tão obscura. Essa província era chamada de Khoresm, que é o mesmo nome desta província da atual república do Uzbequistão, o mesmo nome desde o século VI antes de Cristo.
O dia havia começado muito bem. Levantei às 5h40, acertei tudo no meu hotel em Tashkent e fui para o aeroporto apanhar meu vôo para Urgench - uma cidade maior próxima a Khiva, conhecida como sua porta de entrada. Antes de embarcar, aguardando na fila para a pista do aeroporto, reconheci os dois franceses que havia encontrado no dia anterior perto do Khast Imom. Conversamos. Jean-Marie e Olivier trabalham em agências de turismo e, à medida que eu os ouvia falar, concluía mais e mais de que se tratavam de dois viajantes profissionais - aqueles que não temem ir a zonas de guerra ou terras em litígio, nem a países onde não se fale um idioma nem remotamente inteligível, se nesses locais houver um templo ou um ponto turístico de interesse. Olivier, o mais alto e moreno, me mostrou seu passaporte. "Estive no Turcomenistão no ano passado", disse, pouco antes de rir com minha cara de espanto (o Turcomenistão é uma espécie de Coréia do Norte da Ásia Central: um país fechadíssimo, imensamente misterioso, com um regime neo-stalinista, para o qual tentei arranjar visto três vezes sem ao menos receber uma carta do governo me explicando porque estava me ignorando). "E, nesta viagem, estamos indo para o Tadjiquistão", disse Jean-Marie, o baixinho loiro, antes de rir da minha cara de espanto duplo (o Tadjiquistão é considerado o país mais pobre e perigoso da Ásia Central, e ainda se recupera de uma longa guerra civil iniciada logo após sua independência, em 1991.) Para minha sorte, descobri que em quase todo o trajeto que eles fariam no Uzbequistão eles estariam nas mesmas cidades que eu, e também o mesmo número de dias. Em Samarkand, nos separaríamos: eles embarcariam na aventura tadjique e eu, em uma aventura de dois dias no Vale de Fergana. Que coisa. Se eu estava inseguro quanto a viajar numa terra tão logisticamente difícil, minhas preces haviam sido atendidas. Só fiquei me perguntando (por pouco tempo) que vantagem eles teriam de me ter, como aceitaram, a tiracolo.
Khiva, do ponto de vista humano, me deixou perplexo. Saindo de Tashkent, uma cidade russa/uzbeque, esperava ver o mesmo tipo de dicotomia espalhada pelo país. Mas logo essa expectativa se evaporou: Não só não vi russos na cidade como também, diferente de qualquer lugar onde estive no Uzbequistão, a língua russa parece ter quase desaparecido. Não das velhas placas, mas do dia a dia. Nem mesmo os mais velhos parecem lembrar muito. Pior: como estamos em Khoresm, os habitantes de Khiva falam uma variação do uzbeque, a língua de Khoresm. E também estamos perto da fronteira com o Turcomenistão, e há alguns que falam turcomano. Também estamos perto da fronteira com uma república autônoma dentro do Uzbequistão, a república de Karakalpaqstan, onde novamente se fala uma língua própria, o karakalpaque - que se parece mais com cazaque do que com uzbeque. Levando em conta que poucas pessoas sabem falar inglês, é realmente difícil entender como esse povo consegue conversar entre si e com os turistas.
Não obstante, a língua é a última coisa que me veio à cabeça ao chegar à cidade.
* * *
Khiva is an odd place. Its historic heart, unlike those of other Central Asian cities, is preserved in its entirety - but so well preserved that the life has almost been squeezed out of it.
- Guia Lonely Planet, Central Asia
Difícil definir este estranho local sem falar dos últimos séculos e relembrar alguns dos momentos mais importantes da história da humanidade. A milenar capital de Khoresm é Konye-Urgench, ou velha Urgench - uma cidade que, por ironia do mapa traçado pelos soviéticos, ficou do lado turcomano da fronteira e hoje nem sequer pode ser visitada pelas pessoas com raízes em Khoresm. Mas Khiva, que assumiu o status de capital pela primeira vez em 1592, foi a última capital do Khoresm independente, o reino ou canato que deixou de existir em 12 de março de 1918, ao ser subjugado pelos russos. Até antes da chegada russa, o canato de Khiva disputava poder com os canatos de Bukhara e de Kokand. Voltando no tempo até antes de Heródoto, está a lenda. A cidade teria sido fundada pelo filho de Noé, Shem, que teria encontrado um poço com água fresca no local. O poço da lenda existe até hoje, no canto noroeste de Ichon-Qala. Depois do filho de Noé, o local foi ocupado pelos persas e, daí, por uma sucessão de povos e conquistadores. Veio Alexandre, o Grande, em cerca de 328 a.C.; Vieram chineses, novamente persas, os hunos, turcos azuis (ou Kök); vieram os árabes, no século VII, e depois turcos seljúcidas; Veio Genghis Khan, em 1219, e depois Tamerlão, em 1379; Os uzbeques, um povo originário da Sibéria, viriam no século XVI e depois disso, mais idas e vindas conduziram a cidade aos domínios dos vermelhos moscovitas. Até antes da conquista russa a cidade era bastante conhecida justamente por ser o maior centro de comércio de escravos na Ásia Central e, possivelmente, de todo o Oriente.
Ichon-Qala é uma cidade-museu. Seus prédios foram todos restaurados e abrigam palácios vazios, mausoléus visitados com periodicidade irregular pelos moradores de Khiva, mesquitas pequenas e madrassas desocupadas. Se há pessoas que moram em Ichon-Qala, são poucas - o que se vê são os locais andando de lá para cá, usando o centro como um atalho para chegar ao outro lado da cidade. Fora isso, as ruas são limpíssimas. A sua principal via de acesso é ocupada por vendedores de lembranças, que pulam de felicidade quando aparecem os ônibus de excursão, que geralmente trazem europeus. Esses ônibus - vi apenas um, com franceses - trazem vida e agitação às ruas de Ichon-Qala que, do contrário, seriam perfeitas demais, irreais demais. Mortas demais. Como bem convém a uma cidade-fantasma mantida no formol do calor da Ásia Central.
Logo na entrada de Ichon-Qala fica a "Arca". Apesar da coincidência, o nome do palácio do Khan não tem nenhuma relação com o pai do suposto fundador da cidade. Dentro dela, há um museu que, por meio de mapas, mostra o avanço confuso dos diferentes povos que conquistaram a região. A sala do trono do Khan é mais um local de lendas. Toda revestida de azulejos azuis com detalhes brancos, a sala tem um teto alto sustentado por pilastras esculpidas de madeira e só três paredes, o que permite que o vento, captado lá no alto, circule melhor. Atrás de onde ficaria o trono, há três portas. Dizem que o khan, quando encarregado de julgar um criminoso, enviava o réu para a porta da esquerda se decidia que ele deveria ser libertado; para a porta do meio se decidisse que ele deveria ser mantido preso; e para a porta da direita, se decidisse que ele deveria ser executado. Pode-se subir tudo, até um terraço do palácio, bem em cima da muralha, de onde se tem uma linda visão de todo o complexo bege da cidade velha. O que se destaca mais lá de cima são três grandes minaretes - magníficas estruturas que refletem como prismas o sol. Um deles, perto da Arca, é baixo, completamente coberto por linhas sucessivas de azulejos, criando mosaicos azuis que se mesclam com a cor intensa do céu sem nuvens. O minarete, chamado de Kalta Minor, parece nunca ter sido completado. Aparentemente, se tivesse sido, seria um dos mais altos do mundo. Outro minarete, o Islom-Huja, é o contrário, magro e se estica no céu. É o mais alto da cidade (45 metros), um verdadeiro imã para os olhos e para os pés. Subi-lo pela espiral de degraus íngremes, no escuro calor, na companhia das piadas de meus dois novos amigos franceses, foi cansativo e não foi. O suor se misturou ao sorriso. Quantos brasileiros já estiveram aqui? Quantos um dia vão estar? "No ano passado, recebemos uns seis", disse um dos donos do hotel Arqonchi, que fica em Ichon-Qala, onde pernoitei. "Mas você é o primeiro, e único, neste ano." Quem são vocês, meus compatriotas, que cruzaram o planeta como eu para conhecer um local tão improvável?
Descobri depois que os azulejos azuis, que me chamaram tanto a atenção na Arca, são algo comum nas dezenas de madrassas, mesquitas e mausoléus. Os tetos também são especiais, esculpidos com motivos geométricos e coloridos, parecendo tapetes persas. E as pilastras sustentando os tetos são sempre ricamente esculpidas. A técnica para dar forma a esses troncos parece ser uma tradição local, que está sendo passada a uma nova geração de entusiasmados artesãos em Ichon-Qala.
Passando perto do mausoléu de Pahlavom Muhammed, o entoar de um suave cântico islâmico por um mulá local afastou meus olhos da técnica de um jovem que esculpia um grande tronco numa oficina ao lado. O cântico, suave e hipnoticamente repetitivo, reverberava na brisa fervente, ecoava dentro dos meus ouvidos e na minha cabeça. Talvez já estivesse lá há um bom tempo. Talvez nunca tivesse deixado de ser entoado desde os tempos dos khans, mas só o percebi quando passei em frente ao mausoléu.
Adentrei seu humilde portão de tijolos ocres. Tirei meus sapatos. Pisei no tapete de uma sala redonda, alta e fresca - com paredes completamente cobertas por azulejos azuis, alguns com misteriosas inscrições em árabe. Os azulejos seguiam até o teto, onde ficava a cúpula coberta por azul do lado de fora, facilmente identificável de qualquer ponto de Ichon-Qala. O mulá estava sentado do lado direito, no chão. Algumas pessoas estavam sentadas à frente do mulá, em um silêncio reverente, com as mãos abertas na altura do peito e voltadas para o teto, como se esperando algo lhe cair dos céus. Uma sensação de veneração tão grande.
Ao sair do mausoléu, cruzei com um grupo de mulheres que sorriu para mim. Usavam aqueles vestidos longos, cor de rosa, vermelho, branco. Dentes de ouro, cabelos presos numa única trança, a sombrinha também colorida para proteger do sol, sem pressa a caminhar. Poucos turistas. Tanta beleza para ser vista.
O mausoléu de Pahlavom Muhammed ecoa seus cânticos no sol da tarde
(Continua aqui)
Arcano9
Miami,
18/8/2003
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