O Homem do Ano é mais um filme que fala de marginalizados, que traz a violência da urbanidade para dentro de nossos olhos. É moda isso, não?
Mas, olhando bem para o filme de José Henrique Fonseca e suas particularidades, vê-se que o tema "da moda" não o torna repetitivo, a caracterização não o maniqueíza e a afetação das imagens (termo usado pelo crítico Inácio Araújo, na Folha de S.Paulo, quando de sua crítica ao filme) não o desqualifica como grande obra do cinema brasileiro contemporâneo e, principalmente, do Brasil contemporâneo.
A história de O Homem do Ano é a trajetória de Máiquel, um rapaz sem muitas perspectivas e ambições que, após matar um bandido do bairro por ter rido de seu cabelo enlourado, acaba se tornando uma celebridade frente a todos da vizinhança. Recebe presentes de comerciantes, é motivo de admiração de outros, enfim, transforma-se meio que acidentalmente num nome conhecido de todos, respeitado e admirado. Logo não demora a lhe proporem outro assassinato em troca de dinheiro e serviços, e daí - num seguimento do "passa boi passa boiada" - o leitor já desconfia do que virá em seguida.
Narrado em primeira pessoa pelo protagonista, ele é o primeiro a nos ambientar com o submundo que o filme retrata (pra variar, o Rio de Janeiro) e nos apresentar seu próprio mundo, visto de seu umbigo. Uma frase dita por ele interessa e implica no ponto de vista que o filme assume dali pra frente: "Deus pensa na gente somente na largada. Depois deixa que a gente se foda" (a frase não é literalmente assim, mas o sentido é bem esse). Eis o que J.H. Fonseca, filho do escritor e roteirista do filme Rubem Fonseca, tenta nos mostrar em quase duas horas.
Produto de seu tempo, O Homem do Ano carrega nas imagens o paradoxo atual entre o valor do humano e da mercadoria. Em quase todos os planos de filmagem, a presença das marcas no mundo moderno é enfatizada. Um mundo em que pessoas jurídicas são tidas com enorme relevância, ditando regras e dominando mercados e sonhos. Não são à toa as corriqueiras exibições de marcas, fachadas comerciais e outdoors no decorrer do filme. Em cada tomada vemos uma lata de Coca-Cola, ou uma garrafa de Ballantine's, ou um vidro de Novalgina, ou vemos a marca da TV recém-comprada ou então o enorme M de McDonalds em frente à casa de Máiquel. Nesse mundo disforme e sem sentido, o homem não deixa de ser mais um produto à exposição nas ruas.
Parece ser indubitável na vida, e mais ainda no mundo do crime (como também mostrou Cidade de Deus), que todo e qualquer homem/ser humano é descartável. Máiquel caminhando pelo bairro e sendo olhado e comentado por todos. Está ali mais um produto que poderá ser consumido - o produto matador (O Matador é o nome do livro de Patrícia Mello que deu origem ao filme). Máiquel não é um homem, é um mero produto com o slogan de o Homem do Ano que mata marginais por dinheiro. Um produto que a classe reacionária irá comprar e usar enquanto lhe convém, até se tornar descartável a partir do momento em que começa a interferir ou a complicar a situação daqueles que estão acima dele em importância e socialmente.
Diálogo com O Invasor e Cidade de Deus
Nesses termos, O Homem do Ano dialoga muito com outro filme da chamada Retomada - O Invasor, de Beto Brant. O quesito descarte está evidente em O Invasor em seu final, quando o espectador percebe o que ocorrerá com o personagem Ivan (Marco Ricca) após este identificar a falência da instituição honestidade no filme. O mesmo em O Homem do Ano: Máiquel acredita ser importante para o negócio de segurança privada (ele e seu bando atuavam como uma espécie de esquadrão da morte) até se deparar com algo que lhe mostrará o contrário. Seu senso de onipotência virá por água abaixo quando compreende o que lhe reservam. Aqui, seu destino diverge do de Ivan, talvez por ser ele um produto do submundo, da marginalia, seu faro de entendimento o salva do destino reservado a Ivan, este o exemplo do mundo burguês que se aventura pela periferia e nela sucumbe.
Ambos os filmes falam de matadores de aluguel, de ascensão social meteórica que causará o choque de "civilizações" e o conseqüente clímax dos filmes.
Em O Invasor, o matador é Anísio, que, após matar suas vítimas, acaba por invadir o mundo de seus clientes e termina por fazer parte dele. Conquista o coração da órfã, filha de suas vítimas, e com sua insistência tirânica, entra para o time da construtora de Ivan e Giba, sem esses admitirem-no. Sua trajetória é ascendente em decorrência de um crime.
O mesmo ocorre com Máiquel. Por um crime "de honra", ele se vê num jogo de ambições e dinheiro que se torna impossível fugir devido a sua formação de caráter e de mundo. Relutando de início, acaba por ceder ao ver seu primo Robson ser morto. Eis o ponto crucial na cabeça de Máiquel e na narrativa. Momento este que coincide - numa montagem paralela proposital - com a morte de Bill, seu porco de estimação. A partir dali, seus valores familiares e morais falem, caem por terra diante da morte do parente e de seu alterego - o porco Bill. Bill não era apenas um porco de estimação, ele representava a consciência moral de Máiquel, seu lado puro e ingênuo. Com isso, o discurso reacionário de Carvalho passa a lhe fazer sentido e seu lema se torna matar ou morrer. Para ele, o matar prevaleceu. Azar dos bandidos.
Suas vítimas são a escória da humanidade, bandidos e marginais que não merecem viver. Isso irá perdoá-lo perante a sociedade, e a figura do dentista Carvalho (Jorge Dória) é o expoente dessa classe que prega o mote "bandido bom é bandido morto". Quando ele explica a Máiquel sua idéia e quer lhe persuadir a matar o estuprador de sua filha, diz que é totalmente a favor da pena de morte, que é racista e não é hipócrita de negar isso e que o sujeito já nasce com impulsos criminosos. No fundo, Carvalho e seus dois outros comparsas são o produto da nova sociedade liberal surgida nos anos 90. Reflexo de uma política que gerou desemprego, falta de perspectivas na juventude, pobreza e, por conseguinte, aumento generalizado da violência em nossos centros urbanos.
Enquanto essa política gera os marginalizados que vêem na violência uma forma de sobreviver a esse mundo injusto, Carvalho é produto oposto, reflexo burguês da classe média amedrontada (o forte esquema de segurança, com câmeras ao redor de toda a sua casa, ilustra bem isso) com essa escalada de violência que ela própria, INJUSTAMENTE, é o alvo maior. Com um detalhe: enxergam em Máiquel um agente em potencial de sua vingança, de sua idéia ideal de justiça.
Vejam que a injustiça está dos dois lados - nos marginais, por não haver oportunidades nem perspectivas de melhora; na classe média, por ela sofrer e ter seu mundo ameaçado por uma realidade que não lhe diz respeito e que ela nada tem de culpada. No fundo, ambos erram em seus meios de se defender, meios que deveriam pertencer ao Estado, mas este está falido e não é capaz de fazer o que lhe é dever. Mas como exigir algo de uma instituição que está corrompida e consegue fazer parte de ambos os lados, até mesmo uni-los em seu próprio interesse??
Estética, linguagem ou o quê?
J.H. Fonseca pensou o filme numa atmosfera dark, repleta de cores e carregada na poluição visual. Em quase todo plano de O Homem do Ano temos um outdoor, uma fachada comercial, uma marca em exposição. As pichações nas casas, as pinturas nos muros, os outdoors rasgados indicam esse mundo moderno e agitado de hoje, como já dito acima. Diversas vezes vemos a chegada do protagonista a sua casa e o plano é sempre o mesmo - a câmera no alto, à altura de seu apartamento, move-se lentamente à direita, tendo abaixo a rua toda iluminada - as cores verde e amarela em destaque - com o cair da noite. A fotografia é fosca, dando às cores a expansão da não-nitidez, tal como nossa visão nesse horário, que perde sensibilidade e vemos as coisas com menor nitidez e foco. O plano de chegada de Máiquel em casa é um dos poucos em que o plano é mais aberto, e mesmo assim ele mostra um cenário repleto de limitações - o prédio, a rua cheia de gente, os fios de eletricidade, as luzes incessantes das fachadas do comércio, as pichações nas casas.
Entrar em casa não é apenas a entrada de Máiquel em seu espaço privado, mas também a volta dele ao seu mundo subjetivo. Ao entrar, a câmera se volta a ele, majoritariamente a ele. Daí a busca incessante em manter em close o rosto do protagonista, buscando nas expressões do rosto e no manejo da câmera uma forma de se contar a história. Esse truque pretende dar ao espectador a lembrança de que aquele homem é seu mundo e este mundo é o que está sendo contado. Alternando primeiros planos de seu rosto com câmera subjetiva (aquela que mostra a visão do personagem, do ponto de onde ele estaria vendo a ação), procura o tempo todo manter o filme na linha do subjetivo.
Os primeiros planos dominam o quadro. Em muitos casos, é com esse plano e movimentos da câmera que seu interior é exteriorizado. Exemplo maior disso ocorre quando sua esposa o acusa de ter um caso extraconjugal. Ele se tranca no quarto e senta à cama. A câmera cola em seu rosto, afasta, aproxima-se novamente e assim segue com a voz irada da mulher ecoando em sua cabeça. Naquele instante, é sua mente que nos é revelada, com toda sua agitação e assombro perante aquilo que vive. Logo em seguida, quando abre a porta e encara a mulher, novamente a câmera se volta em close para seu rosto e passa a dançar ao seu redor, como a indicar a febre alucinante do seu ato e a indefinição de seu futuro a partir dali.
As cores carregadas, resultado de muitas filmagens noturnas, indicam um tom sombrio. Um "clima subterrâneo", nas palavras do diretor, que faz parte do universo de formação deste. Sócio da Conspiração Filmes, grande produtora carioca de publicidade e cinema, não chegou aos 40 anos ainda e é da geração recente do cinema brasileiro (O Homem do Ano é seu primeiro longa-metragem), geração que viu a ascensão do vídeo, do videogame e da publicidade. Natural que colocasse no filme um pouco de seu mundo, o que inclui certos retoques dignos de uma fotografia publicitária. Alguns planos estilizados, de plasticidade antinaturalista, envolvem o ambiente de Máiquel. Quando este está em cena, é sua figura que domina o quadro, e seu redor parece sempre convergir para ele. Muitas vezes ele nem está ao centro, mas numa das laterais do enquadramento, deixando espaço para o cenário em segundo plano, que indica algo ao espectador (o pôster do filme traz um desses enquadramentos, com o rosto de Benício à esquerda e um fundo neutro), mesmo que seja o vazio. E o vazio faz com que inevitavelmente nos voltemos ao objeto em cena, no caso, o protagonista.
Isso talvez não seja publicitário, mas não deixou de ser acusado do mesmo. Publicitário ou não, o maior truque que poderíamos identificar com a linguagem publicitária é o tom clean do filme. Alguém se lembra da fotografia de Eu Tu Eles, que dava ao sertão nordestino uma beleza plástica jamais vista? Pois bem, a fotografia de O Homem do Ano faz a mesma coisa, só que com a urbanidade carioca e suas peculiaridades. O tom carregado, que parece até borrado muitas vezes, não consegue impedir que vejamos uma imagem limpa, sem o aspecto sujo e inusitado de um O Invasor, por exemplo.
Além do filme de Brant, O Homem do Ano aproxima-se também de Cidade de Deus. Muitos dos artifícios de montagem e roteiro deste estão no filme de J.H. Fonseca. O grupo de Máiquel se assemelha ao bando de Zé Pequeno, e o ritmo e a solução da montagem da narrativa da tomada das bocas por Zé Pequeno é muito similar à de amostragens do serviço de Máiquel e seus homens. Mortes, emboscadas, com a batida forte da música e quase sem som ambiente, com as imagens fundidas umas às outras sem o cortem seco.
A música, de Dado Villa-Lobos, é fundamental no clímax, quando Máiquel surge a acertar as conta com todos. Traído, ciente do destino que lhe reservam, resolve tomar as rédeas de sua vida. Essa seqüência final está imbuída de uma atmosfera onírica, como a indicar um sonho do personagem. Mais indicativo ainda é ele logo em seguida pintar os cabelos de preto, como a resgatar o velho Máiquel, ou como a sinalizar a virada de página de uma vida.
O Homem do Ano é mais um integrante dessa tendência do cinema brasileiro de retratar o caos social e a violência que toma conta dos noticiários nacionais. Situação que, se é horrenda para a realidade do país, está sendo frutífera para a ficção audiovisual brasileira. Amarga constatação.
Este trecho de seu texto é um absurdo:
”Vejam que a injustiça está dos dois lados – nos marginais, por não haver oportunidades nem perspectivas de melhora...”
Justifica a marginalidade como conseqüência da pobreza, quando há milhões de pobres que vivem honestamente, sem optar pelo crime.
Este é um erro comum na intelectualidade brasileira. Conheço trabalhadores que moram na Cidade de Deus, e que passaram a ser (muito mais) marginalizados por causa daquele filme, que mostra os moradores como criminosos.
Concordo...
Ana, eu entendo o oposto de você. Acho que o trecho não generaliza os mais pobres como sendo marginais, nem tenta justificar esta marginalização pela pobreza. O que o trecho me passa é que esta parte da população mais pobre que acaba caindo neste tipo de vida acaba não encontrando um caminho de volta, fica sem oportunidades nem perspectivas. Acho que é a isto que o texto se refere como injustiça.