COLUNAS
Quarta-feira,
10/9/2003
Nas selvas, as misérias humanas
Rennata Airoldi
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A vida moderna é de uma lógica quase virtual. Impossível adivinhar. Dissonantes são as sensações de poder, de conforto e, ao mesmo tempo, de miséria e solidão. Tudo depende apenas do ponto de vista de cada indivíduo. De onde você vem para onde vai, e em qual "casta" social você se encontra. Numa metrópole, pode-se morar num beco fedorento ou num apartamento de luxo com tudo aquilo que sempre se desejou. Você deve estar se perguntando se isso não é uma realidade universal. Certo: pequenas cidades também contam com as diferenças sociais, mas é claro que, dentro das selvas das cidades, os extremos estão mais acentuados.
Isso tudo determina o que se pensa. Como agem cada um dos indivíduos que vivem numa mesma cidade, embora em situações diferentes. As revoltas e indignações de cada um. É então, nos lugares públicos, que eles se encontram e se defrontam. Nunca parou num banco de um parque e foi imediatamente solicitado por um outro alguém que passava? Então, de novo, aquela velha história sobre o tempo, a previsão climática, etc. Quantas horas dispensamos para conversar com pessoas desconhecidas com as quais, provavelmente, jamais nos encontraremos de novo?
Zoo Story é um texto de Edward Albee, que foi escrito em 1959 e vem sendo montado em todas as partes do mundo desde então. Na peça, Jerry e Peter se encontram num banco de um parque, numa linda tarde de domingo. Aqui, dois mundos, dois universos se enfrentam numa conversa sobre os valores e a maneira de se levar a vida. Um, morador de uma pensão na zona pobre da cidade; o outro, pai de família, editor cuja vida se resume ao trabalho, aos filhos, à esposa e a seus gatos. A questão aqui é: o que uma inocente conversa pode produzir na vida desses dois homens? Sem dúvida, os encontros e desencontros podem ser determinantes.
Em poucas palavras, a história parece simples e pouco cativante, mas uma situação simples (que pode ocorrer na vida de qualquer um) pode vir a ser um ponto de partida para uma boa história. Isso se um dos personagens já estiver com uma idéia fixa na cabeça. Uma atitude pré-meditada, que determinará um novo rumo nas suas vidas. Tudo na montagem é simples, sem muitos recursos desnecessários. A direção é de Olayr Coan e, em cena, Charles Geraldi e Gustavo Haddad vivem Jerry e Peter, respectivamente. Folhas secas e dois bancos compõem o cenário, que é recortado todo o tempo com um jogo de luz. Para ajudar a compor os climas presentes na peça, um músico contracena com os atores. O interessante é o tempo de cena: quase o tempo real. Já os silêncios e as pausas são tão determinantes quanto o que dizem os personagens.
Acredito, assim, que a grande dificuldade de acertar na montagem dessa peça seja justamente deixar que o clima do texto se instaure. As palavras que, ao mesmo tempo, parecem dissonantes (em relação ao pensamento dos personagens) têm, sim, um significado preciso. Nesse sentido, a montagem poderia ser mais densa, mais surpreendente. Isso depende muito da maneira como os atores estabelecem o jogo desde o início da peça. De qualquer forma, a semente desse clima está plantada; basta que os atores tenham mais calma na execução e deixem-na "germinar", crescer.
Para ir além
Zoo Story está em cartaz no Ágora (Rua Rui Barbosa, nº 72). Sextas e sábados à meia-noite, e domingos às 19 hrs. Até 28 de setembro.
Dica I
O Mercado do Gozo é a nova montagem da Companhia do Latão. O Grupo, que já tem um trabalho bem conhecido e conceituado, traz para a cena uma comédia que satiriza o universo do cinema, da imagem, da pornografia e da mídia. O quanto somos mercadorias de nós mesmos e qual valor de nossas vidas. Uma fábrica e seus produtos. O início da indústria e da classe operária. Os bordéis e suas mulheres. A mulher como mercadoria. Tudo num mesmo mundo, numa mesma estrutura. O comércio do corpo e da alma. Tudo isso somado a uma grande brincadeira: um set de filmagem!
A montagem tem o grande mérito de somar a comédia à reflexão inteligente através da ironia. Como já é determinante no grupo, a direção e toda a parte técnica que compõe o espetáculo é muito precisa. O grande destaque é, sem dúvida, o trabalho dos atores que se despem e se vestem de vários personagens no decorrer da trama. A peça é uma ótima opção para os que já são fãs do grupo ou ainda não conhecem seu trabalho. Diferente da última montagem, que trazia um tom intelectual e político exaustivo, esta, por sua vez, consegue criticar e divertir ao mesmo tempo. Ou seja: une o útil ao agradável.
O Mercado do Gozo está em cartaz no teatro Cacilda Becker (Rua Tito, nº 295). De quinta à sábado às 21hrs., e domingos às 20hrs.
Dica II
Vozes Dissonantes é a peça de Denise Stoklos que está em cartaz, de terça a quinta, no teatro João Caetano. Como já é conhecido da atriz, autora, diretora: em cena, apenas a luz e a grande performance. A peça discute os 500 anos do Descobrimento do Brasil. No palco, fatos históricos são levantados de maneira a desvendar a nossa própria história. Aquela que não encontramos nos livros da escola... A peça é um misto de comédia e de revolta. Um foco de resistência! A atriz é, sem dúvida, uma referência para o teatro contemporâneo brasileiro. Para quem nunca teve a oportunidade de ver algum de seus trabalhos, ainda é tempo.
(Teatro João Caetano: Rua Borges Lagoa, nº 650; de terça a quinta, às 21 hrs.; até 28 de setembro.)
Rennata Airoldi
São Paulo,
10/9/2003
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