Filosofia, normalmente, não é um assunto que atraia muita gente. Parece ser coisa de iniciados, algo que necessita o domínio de um outro código para poder ser compreendido. Talvez seja para afastar essa impressão que o livro de Frédéric Schiffter tenha uma capa com lay out tão leve e agradável. O título do livro também desperta muito mais curiosidade do que outros que tratam de filosofia. Sobre o blablablá e o mas-mas dos filósofos (José Olympio, 2002), escrito em letras coloridas, pode despertar em alguns leitores o desejo reprimido de se vingar de seus professores de filosofia do segundo grau e da faculdade. Finalmente alguém vai dizer que os filósofos não falam nada com coisa alguma! Bem, quando se lê a orelha do livro e descobre-se que o próprio autor é filósofo, já dá para desconfiar.
A proposta de Schiffter é desmascarar os filósofos que procuram entorpecer a desconfiança e o espírito crítico e aqueles que privilegiam a essência em detrimento da realidade. Os primeiros são da ordem do blablablá, ou seja, charlatães. Os segundos pertencem à categoria do mas-mas, são uns afetados.
Essas reflexões são fruto do tédio do autor, conforme ele mesmo confessa. O professor animado, motivado, adorado pelos alunos, um pouco esnobe por pertencer à classe dos que conseguem discutir o amor em Platão ou o estético em Kirkegaard, deu lugar a um homem que recusa fazer qualquer esforço para tornar-se interessante. Desiludido com a vida acadêmica e com a disciplina, ele resolveu atacá-la.
A orelha do livro me diz que Frédéric Schiffter é professor de filosofia e que publicou mais dois livros, um deles ele próprio renega. Se na profissão de ensinar já perdeu interesse, resta apenas a de escritor. Tendo desistido de interagir, seja com os alunos, seja com o ambiente da academia, o autor deve estar buscando no tédio o subsídio para suas reflexões. Não que o tédio não seja um estado válido para ser considerado. No entanto, não é a primeira vez que vejo o tédio sendo utilizado como desculpa para alguém assumir posições polêmicas, por vezes despropositadas, com o objetivo de chamar a atenção.
À medida que evoluía na leitura, tive uma sensação de déja vu um pouco desagradável. No início não pude identificar muito bem de onde vinha, mas depois percebi que o oportunismo que permeia o texto é uma situação muito comum entre alguns escritores, críticos e cronistas. Já tendo tido contato com alguns deles, pude reconhecer em Schiffter a mesma motivação.
Uma das estratégias para quem se sente rejeitado no grupo ou no meio que freqüenta é desqualificar esse ambiente. A partir do momento em que não mais se aceita a sua legitimidade, as opiniões que dali vêm não têm mais validade. A partir do momento em que não se consegue mais ser o centro das atenções, será necessário buscar os holofotes através de outra estratégia: a polêmica. É como aquela fábula em que a raposa, ao não conseguir alcançar o parreiral, diz, como desculpa para sua incompetência ou incapacidade, que as uvas estão verdes. Assim, assumir que a vida é um tédio e conformar-se com isso isenta o indivíduo de procurar melhorar, progredir, buscar a simpatia, o afeto e a aprovação do próximo.
Apesar de fingir não querer a aprovação, esse tipo de pessoa precisa dela a todo custo para poder manter-se na ribalta. Por isso, joga com a raiva e com a compaixão. A raiva é o que gera a polêmica, é o que chama a atenção. A compaixão perdoa o indivíduo e evita que sofra as conseqüências das opiniões que emite. Para angariar esse sentimento, Schiffter desqualifica-se e fala das suas crises de epilepsia, assim como outros falam de suas depressões, de suas perversões e de toda sorte de males psíquicos.
O autor consegue causar polêmica ao desqualificar filósofos populares como Platão, que para ele não passa de um "charlatão", que é como ele define quem abusa de si mesmo para abusar dos outros depois. Como ele mesmo suspeita, essa é uma adaptação um pouco forçada da definição do Petit Robert para o termo charlatão. O que Schiffter quer dizer é que Platão recusa-se a ver a realidade das aparências para buscar uma versão idealizada e ilusória. Por isso, Platão é um representante da ordem do blablablá.
Já o filósofo do mas-mas é o afetado, aquele que, descontente consigo mesmo, acaba por estender sua aversão ao resto dos mortais. Mas não é um pouco isso que o autor faz?
Apesar das motivações do autor para essas considerações, elas não deixam de ser interessantes e de mostrar um outro ponto de vista. Mostrar a validade das aparências e desmascarar os progressistas e otimistas oportunistas, aqueles que maldizem o hoje para se colocarem como salvadores do amanhã, é uma ótima reflexão para os dias de hoje. Se a aparência é o que determina uma quantidade enorme de juízos e valores que fazemos dos outros, e se as aparências são aparências de uma essência, não há porque desprezá-las em detrimento de uma essência única, que talvez não exista. E desmascarar os demagogos é uma providência urgente para que se fale menos e faça-se mais.
Apesar de sentir no autor um cheiro de oportunismo e uma tentativa de se fazer notar pela polêmica, Schiffter conquistou minha simpatia ao criticar um tempo e uma sociedade onde somos obrigados a ter estampada no rosto uma motivação que nos obriga ao dever da diversão. Ou então ao dizer que nada pode ser mais tedioso do que um homem ou uma mulher dinâmicos que nunca se enfadam, que se recusam a se entregar à volúpia de ficarem tristes. Aliás, a felicidade, para ele, não é algo que se possa buscar ou que se mereça, o que vai contra toda a cultura cristã e católica na qual vivemos. A felicidade ou a infelicidade acontecem por acaso, e não há nada que se possa fazer para conquistar uma ou outra. É claro que ter saúde e dinheiro é melhor do que não tê-los, mas tê-los não é garantia para a felicidade. Esse ponto de vista desobriga o ser humano de correr atrás da felicidade, tornando-o mais tranqüilo para viver os momentos da maneira que se apresentam. Não ser responsável pela própria felicidade evita uma sensação de fracasso que acompanha quem vive em uma sociedade onde a felicidade é valor e não mais apenas um estado de espírito. Não basta mais se belo, inteligente e rico: é preciso ser feliz.
Enfim, um livrinho como esse dá muito pano pra manga. É pequeno, a linguagem é acessível e as referências são menos distantes do que as que normalmente fazem parte dos áridos textos filosóficos. Tirando o capricho do autor, suas idéias valem ser consideradas, principalmente à luz do modo como vivemos hoje.
Muito interessante Adriana. Falando em filosofia, um autor de quem jamais li "blablabla" ou "mas,mas", é o Bertrand Russell, em "História da Filosofia Ocidental". Que quase ninguem ouça falar desse livro hoje me parece sintomático da desconversa e enrolação que permeia esse assunto. Gostaria de saber sua opinião.
Sobre a felicidade, li um ótimo livro que esmiuça bem esse cansaço que nossos músculos faciais sentem hoje em dia em sempre estar sorrindo e sorrindo. Só não concordo com os autores, o que você analisou e, o que eu li, Pascal Bruckner ( A euforia perpétua - ensaio sobre o dever da felicidade)quando falam na religião católica. O próprio símbolo católico de jesus sacrificado na cruz é uma prova de que se Ele sofreu, digamos, o filho de Deus, imagine nós aqui na terra. A religião protestante, mais mercantilista que qualquer outra, retirou o Jesus banhado em sangue e com expressão facial tomada de sofrimento. No mais, concordo com tudo. O pior, é que não adianta só ser feliz, temos que provar que somos. E tome alto afirmação pessoal em qualquer canto que formos. Principalmente, em ambientes de trabalho. O pior é que muitos se dizem budistas e como mostra Bruckner, eles disvirtuam os ensinos de Buda. Eles praticamente exibem suas tripas interiores, ao invés de procurar o nirvana em um processo solitário em cada um deles. Sinceramente, haja babaquice!!!