COLUNAS
Terça-feira,
7/10/2003
Entrevista com o poeta Régis Bonvicino
Jardel Dias Cavalcanti
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Régis Bonvicino, poeta e tradutor, é autor dos seguintes livros de poesia: Bicho Papel (Ed. Greve, 1975), Régis Hotel (Ed. Groove, 1978), Sósia da Cópia (Max Limonada, 1983), Más Companhias (Olavobrás, 1987), 33 Poemas (Iluminuras, 1990), Outros Poemas (Iluminuras, 1993), Ossos de borboleta (Ed. 34, 1996), Céu-Eclipse (Ed. 34, 1999), Remorso do Cosmos (2003). Publicou também o livro de poesia infantil Num Zoológico de Letras (Maltese, 1994). Junto com o poeta americano Michael Palmer publicou Cadenciando-um-Ming, um Samba para o Outro (Ateliê, 2001). Tem se dedicado a traduzir e publicar no Brasil a obra de poetas como Jules Laforgue, Michael Palmer, Robert Creeley, entre outros.
1 – Você é tido como um poeta eminentemente urbano (vários temas de sua poesia são tratados no âmbito das metrópoles). Em termos de resultado da linguagem poética, de que forma o mundo das metrópoles interfere na sua escrita?
R.B. : Nasci em São Paulo, em 1955 e vi esta cidade crescer, crescer, crescer. Digo para mim mesmo que São Paulo é uma espécie de “céu inacabado”. Mas, por outro lado, a natureza está muito presente em minha reflexão poética. Interessa-me o contraste entre natureza e cidade e não a cidade em si ou o tema urbano em si. Aliás, se eu pudesse voltar no tempo, gostaria de ser arquiteto. Então, sou um pouco urbanista e arquiteto em meus poemas. A cidade está muito ligada, popularmente, à idéia de cartaz, neon, letreiros. É o popular-internacional. Há duas décadas que não mais me interesso por este tipo de linguagem da cidade. Oscilo entre a vitalidade e a melancolia.
2 – Como você equilibra na sua poesia o rigor do fazer poético com suas tensões existenciais?
R.B: Não sei se equilibro rigor poético e tensão existencial. Nos últimos anos, escrevo quase que um diário que, de tempos em tempos, transformo num livro. Há um intimismo nas coisas que escrevo. Para mim, rigor poético significa indagar com seriedade e afinco o que é poesia?; o que a faz diferente da prosa?; o que a torna de fato poesia?; que diferença ela faz?. Tensões existenciais? Quando você vai ficando mais velho, elas se traduzem na questão de seu próprio desaparecimento.
3 – Além de poeta você é tradutor. Que relação você vê entre seu trabalho como tradutor e seus procedimentos de criação?
R.B – Em alguns momentos, as traduções que faço influenciam meus próprios poemas. Em outros momentos, não. Gosto de escrever a partir do zero. Mas, não me considero um tradutor ou um transcriador (na acepção de Haroldo de Campos). Não sou um “scholar”. Mas acho saudável que eles existam. Tanto tradução como poesia, para mim, seguem no ritmo do repente ou do cool jazz. Há muito do momento, da improvisão, do diálogo, sem pretensão de verdade ou de paradigma. Quando traduzo, gosto de traduzir “alguém”. Então, cria-se o diálogo.
4 – Pensando no conjunto dos seus livros de poesia, você identifica algum tipo de mudança significativa na sua poesia?
R.B : Acho que sim. Quando eu era muito jovem, senti mais o impacto do concretismo. Ali por volta de 1975/1980. Depois disso, minhas reflexões e ou poemas caminharam para uma inflexão intimista, exclusivamente com a palavra e mesmo dentro deste percurso da palavra há muitas mudanças. Todavia, creio que de 1990 para cá, persisto mais ou menos nos mesmos equívocos.
5 – Alguns versos de sua poesia nos fazem pensar num projeto poético-filosófico. “um sol vago/ que vai/ como quem/ não veio/ sol de soslaio/ este é o sol/ que leio”. Podemos encontrar na sua poesia uma forma de reflexão sobre sua poética? Você faz uma poesia que reflete sobre si mesma?
R. B : Quem sou eu?. Vim de uma família pobre, de um lado mineira de Uberaba, e de outra caipira do interior de São Paulo. Filosofia? Quem sou eu? Não nasci em Recife ou em Paris! Se há, é por acaso. Mas sim há uma busca de reflexão nos meus poemas, constante. Não há poesia que não reflita sobre si mesma e sobre o mundo etc. Caso haja, não é poesia. Para mim, boa poesia é aquela que deixa claro seu fracasso, que revela seus limites e sua poética.
6 – Que poetas te marcaram mais existencialmente e quais influenciaram mais a sua própria criação poética no começo?
R.B : Carlos Drummond de Andrade, Álvares de Azevedo, os poemas (e não poetas) concretos, as letras de Caetano Veloso, John Lennon. Até hoje acho que os Beatles, que todavia não ouço há muito tempo, não foram superados por nada e ninguém, neste âmbito pop, a arte conceitual do grupo Fluxus. Depois, me desinteressei da questão som & visualidades.
Só me interesso na minha agenda de criação por poesia de inovação e, por isso, acho que meus principais interlocutores são, há dez anos ao menos, os language poets, como Michael Palmer, Charles Bernstein, Claude Royet-Journoud, Cecilia Vicuña e outros. Eles trabalham com práticas centrais da poesia e não com práticas alternativas, como a poesia visual. Acho, neste sentido, que já avançamos muito além do concretismo. Leminski e eu e depois outros. A poesia concreta é um tanto limitada em termos de resultados – mesmo inclusive os poemas para computador, que, para mim, partem de questões teóricas já vencidas e não funcionam como, digamos, uma escritura propriamente eletrônica. Mas, estranhamente o concretismo ainda é visto como "vanguarda" ou como a vanguarda que precedeu a tudo. Talvez isso se explique pelo conservadorismo brasileiro ou pelo que a crítica consagra, ou seja, o requentado, o intermediário, o moderado. Há um grande equívoco nisso, de o concretismo ser considerado ainda vanguarda, é muita técnica de controle. Enfim, gosto de desafios e o meu é o de tentar levar a poesia adiante! Jardel, também estou muito ligado a alguns artistas plásticos, como a Regina Silveira e o Guto Lacaz.
7 – Que poetas brasileiros contemporâneos você acha que são realmente relevantes e que poetas contemporâneos brasileiros te são mais caros?
R.B : Sou muito contestado e aprendi ainda mais com as críticas a ressalvar que minha opinião é minha opinião e não a verdade. Fui contemporâneo, embora muito mais jovem, de Drummond, de Cabral, de Vinícius, de Murilo Mendes, que morreu em 1975, etc. Talvez isso baste, não?. Entre os mais velhos, gosto dos poemas de Décio Pignatari, de várias coisas de Ferreira Gullar, de Laís Correia de Araujo, de Affonso Ávila. Do Augusto de Campos, puro, sem suas teorias. Por exemplo, achava o Haroldo de Campos, que acaba de morrer, um poeta bom, mas irregular. Um momento bem alto, embora prolixo: “Galáxias”. Um momento baixo: “Signantia: Quasi Coelum”. Eu gosto de Manoel de Barros – poucas coisas -, da Hild Hist, muitas coisas, de Leminski – mais do lado erudito -, de Claudia Roquette-Pinto, de Duda Machado, do Júlio Castañon Guimarães, de Carlos Ávila, de algumas coisas do Carlito Azevedo, embora eu o considere portador de opiniões muito inconsistentes, de várias coisas do Age de Carvalho, da Ana Cristina Cesar, do Torquato Neto, da Josely Vianna Baptista, do Moacir Amâncio, da Jussara Salazar , do Eucanaã Ferraz, do Ruy Proença, do Chico Alvim em alguns momentos, do Antonio Moura, da Ângela de Campos, do começo dos anos 90 do Horácio Costa, do jovem Nelson Ascher tradutor e de alguns de seus poemas; hoje, no entanto, vejo-o como um homem à extrema direita, com uma cabeça caótica, que elogia Bush, Sharon, Berlusconi.... gosto do livro As Coisas., do Arnaldo Antunes. Entre os novíssimos, acho que o Paulo Ferraz tem talento, que o Matias Mariani tem talento, que o Fabiano Calixto é uma bela promessa, que o Gustavo Arruda tem um caminho . Manoel Ricardo também é um dos jovens talentosos e já com alguns resultados. Gosto muito do Douglas Diegues. Acho que o André Dick é uma bela promessa. Há alguns, razoáveis, que tem mais ambição do que, digamos, trabalho por enquanto; alguns que, aos vinte e tantos anos, perguntam: onde está o meu tradutor para o chinês? São os talentosos ansiosos.
8 - Você acredita que exista alguma característica que marca de forma visível a poesia brasileira contemporânea?
R.B: Sim.... uma hesitação entre Drummond, Cabral e o concretismo (risos). O que eu mais valorizo é a busca de uma linguagem inovadora e esta questão não está muito presente, de um modo geral. Há também um amadorismo muito grande. Um poesia prosaica. Prosa cortada como se fosse poesia, sem nenhuma sofisticação poética. Enfim, esse é um papo-cabeça demais. À poesia brasileira atual falta quase tudo, de rigor a amor e também humor. Há muitos poetas que ainda acreditam na ingênua teoria da antropofagia de Oswald de Andrade! Olha, quase ninguém por aqui estuda. Quem sabe o im(pós)sibilismo renovará morna poesia brasileira.
9 – Você lê poesia contemporânea de outros países? Que poetas você indica aos leitores brasileiros?
R.B: Sim... há mais de uma década, ao menos. A lista seria imensa. Acho que a leitura de outras línguas e outros poetas de outros línguas é fundamental, para romper o círculo vicioso de Cabral-Drummond- concretos. E trazer novos horizontes, alargar a mente, pressionada sempre pela mediocridade.
10 - No seu novo livro Remorso do Cosmos, algumas metáforas indicam uma tensão que o faz “querer algo além dos cômoros”, numa espécie de desconcerto existencial. É esse desconcerto que o faz poeta?
R. B: Cômoros são dunas, aquelas dunas da praia. Quero ver além dos cômoros ou quero algo além destas visões quase que pedrestes, confortáveis, suaves. Sem esse desejo, bastariam os jornais ou a poesia que temos hoje. A arte seria desnecessária. Arte é reflexão e inovação e o mundo precisam disso! Precisamos todos ver além dos cômoros.
11- Para você existe diferença entre se criar poemas tradicionais e poemas em prosa (estes aparecem de forma marcante no seu novo livro)?
R. B: Jardel, só escrevo reflexões inabituais, digamos. Às vezes, preciso da linha da prosa e às vezes preciso do corte do poesia. Escrever em prosa é uma forma de tentar alongar os poemas. Há muito tempo que eu hesito entre a poesia e prosa curta. O Remorso do Cosmos é um livro sutil, que vai exigir do leitor leitura. Eu busquei complexidades. Então, a questão central para mim, neste livro, é política e não formal, entre prosa e poesia. Os poemas são vazados por um desalento, digamos assim, com o mundo. Espero que o leiam! Mas, acho que não será muito entendido.
Para ir além:
http://sites.uol.com.br/regis
Sem título (2)
Na virtude dos músculos, dias diamantinos, no frêmito de ser & quando efetivo, na força das vigas, no ânimo de paredes, erguidas, gerânios no canteiro, tijolo, um a um, firmes, fio avariado, pupilo de um suicídio, alento de silhueta, na derrocada da cor, estilhas de vidro, aranhas na cama, sol em surdina, persistindo, no tumulto de pancadas, cúpulas, ópio hipnótico, clemência dos meses, brio de ladrilhos, lâmpadas sob o teto, o alento em si do vento no flagelo da janela e demais utensílios, déspota de portas, escombros do cômodo, caliça, verdugo de seu próprio muro, maciço.
A nuvem
A nuvem é um espaço
abrupto. Um céu brusco
É um espaço muito
pouco firme e úmido
quando chove
É um espaço acústico
espaço que se funde
(um abutre atravessa uma nuvem)
o raio rompe, ignívomo,
vômito de fogo,
o céu nublado da janela
do edifício no crepúsculo fulvo
um céu de rosas adunco
o vento traga as nuvens
êxtase
É um espaço vizinho
pó de meteoros e abismo
não está ao alcance do úmero
ou das mãos
É um espaço aflito
apátrida
para a chuva, as cifras e o cacto
lua ao meio-dia
É um espaço inútil
do ponto de vista de um número
É o espaço último
quando um míssil
noctilucente triste lúgubre
para a Vera Barro
Sexto poema
Sob a ira das víboras
na agonia das cortinas
onde atiravam pedras
no aterro de mim mesmo
meses a fio
o veneno de acônitos
no atear-se fogo
no açular o nervo do açúcar
querer algo além dos cômoros
Jardel Dias Cavalcanti
Campinas,
7/10/2003
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