Pierre Verger foi daquelas personalidades ditas "cosmopolitas". A Paris de 1.902 e a Salvador de 1.996 são dois termos d'uma existência nómade adequada a sua imensa curiosidade em conhecer os povos do planeta. Contava trinta anos quando aprendeu a fotografar profissionalmente, ofício aperfeiçoado em catorze anos de andanças. Apesar de no ano de 1.946 fixar sua base em Salvador, sempre manteve o gosto de permanecer em trânsito. N'esta cidade, sua atenção recaiu sobre os negros e seus ritos avoengos, impulsionando-o a estudá-los melhor, fazer pesquisas mais profundas. O interesse pelo candomblé levou-o a envolver-se com as práticas, e o envolvimento permitiu-lhe promover o intercâmbio entre algumas nações do oeste africano - Benin, Nigéria - e os residentes na Bahia a elas ligados por hereditariedade e tradição. Escreveu os livros Os Libertos. Sete Caminhos na Liberdade de Escravos da Bahia no Século XIX e Notas Sobre o Culto dos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, No Brasil e Na Antiga Costa de Escravos, Na África, além de muitos artigos para periódicos especializados ou não.
Roger Bastide (1.898/1.974) ligou-se ao magistério e ao ensaísmo desde o início de sua carreira. Foi professor secundário e universitário. Em 1.938 aportou no Brasil para substituir Lévy-Strauss na cadeira de sociologia, participando assim da famosa equipe de professores estrangeiros com a qual foi fundada em 1.934 a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. Aponta-se Florestan Fernandes entre seus alunos. Aqui permaneceu até 1.954, ano de sua volta para a França com a finalidade de assumira cátedra de Etnologia Social e Religiosa da Sobornne. São de sua autoria, além de artigos e ensaios e entre outros, os livros Imagens do Nordeste Místico Em Branco e Preto, Brasil: Terra de Contrastes e O Candomblé da Bahia, este o mais importante e recentemente re-editado.
Como dito, Verger chegou ao Brasil em 1.946, no dia dezassete de Abril, logo travando relações com Bastide. Este encontro permitiu que duas pessoas de farto conhecimento acerca de determinado assunto - ritos africanos - partilhassem e complementassem suas informações, abrissem uma a outra portas para novas pesquisas e, futuramente no elaborar projectos de maior fôlego, encontrassem no outro um conselheiro verdadeiramente apto. Eles souberam aproveitar este encontro e a amizade dele derivada.
O livro Verger/Bastide - Dimensões de uma Amizade traz catorze textos a bem ilustrar esta comunhão de interesses. Entretanto, o excepcional volume não serve apenas para isso. Dá ao leitor informações tão respeitosas quão úteis sobre os rituais africanos que se costuma reunir sob a denominação comum de "candomblé". Conhecendo-se melhor uma religião - qualquer religião - respeita-se-lhe melhor e aprende-se a distinguir as mistificações. Os textos foram destinados inicialmente ao jornal O Cruzeiro e outras publicações técnicas e são surpreendentes na clareza e na legibilidade. O leitor deixa o livro apto a distinguir entre o honesto e o engodo. Há textos escritos a quatro mãos e outros apenas por um dos estudiosos. As fotografias todas são de Verger, porém é ingrato observar a discrepância das legendas, significando que nem todas as imagens foram publicadas. Um texto, o terceiro, traz onze fotografias e legendas para 24.
O candomblé é o local onde realizam-se os cultos africanos. Quem olha de fora não sabe a diferença entre um ritual e outro - festa de Oxum, iniciação das filhas de Nagô - e generaliza falando em "religião de candomblé" e logo em "Candomblé". São vários os cerimoniais e várias as entidades, alguns equivalentes a deuses, outros a semi-deuses, isto é, aqueles nascidos homens mas alçados à divindade. Aponto um paralelo com a tradicional mitologia greco-romana. Febo é o mensageiro dos deuses olímpicos, intermediário entre eles e os homens, e tem por equivalente latino o deus Mercúrio. Entre as entidades mencionadas por Bastide, encontrei Exu com a mesma função. Apesar desta tarefa específica o vulgo, por influência da quimbanda, costuma tê-lo como espécie de demónio promotor de obras malévolas. A mesma equivalência pode ser encontrada entre Ares, Marte e Ogum.
Além da confusão popular, há a acção de charlatões misturando candomblé, umbanda, quimbanda, macumba, voduismo e até o kardecismo. Umbanda é o candomblé de caboclo, aquele que sofreu influências dos cultos índios e tem como fundamentos lições dos chamados "pretos-velhos" e "caboclos". A quimbanda seria a versão negra da umbanda, esta dispondo-se a auxiliar espíritos e pessoas, aquela utilizada apenas para causar malefícios através de sua prática, a macumba. São cenas de macumba as descritas por Paulo Lins no livro Cidade de Deus. O voduismo é tido por versão antilhana do candomblé. Todavia este é transmitido pelos autores como portador de certa pureza ritual e aquele já adquire caracteres sincréticos, mormente elementos do catolicismo. É popularmente conhecido pelos seus bonecos, vendidos até pela Internet por trinta reais a unidade. Já o kardecismo é o espiritismo segundo a doutrina sistematizada por Allan Kardec no século XIX e não deve ser confundido com espiritualismo, termo simplesmente antónimo de materialismo. Quando alguém quer referir-se de modo pejorativo a qualquer destas religiões apelida-as simplesmente de macumba.
Deve ser apontada a questão do sincretismo. O candomblé, se visto como religião única, não é sincretista assim como não o é, v.g., o catolicismo. Já a umbanda e o voduismo são, pois trazem elementos das duas anteriores e mais algumas. No candomblé busca-se distinguir e manter distintas as seitas, como a Nagô e a Jêje, verifica-se a manutenção de uma pureza étnica. Os descendentes de uma determinada nação praticam as venerações que lhe são típicas.
O quinto texto do livro, intitulado Os Mistérios dos Bronzes de Ifé e do Benin narra a descoberta pelo explorador Leo Frobenius de alguns bustos de cobre lavrados com uma técnica naturalista incomum em relação ao que se costumava ver na arte africana. Tal a perfeição das máscaras que se imaginou ser trabalho de algum artista estrangeiro, ou ainda, um negro aluno de alguma academia grega ou romana. Declara Bastide: "Assim, a arte de Ifé, apesar de ser naturalista - o que decorre talvez de uma influência exterior -, não é menos autenticamente africana, se for julgada por estas cabeças tal como aparecem nos museus, desprovidas de seus ornamentos barrocos, mas em seu contexto natural" (pág. 87).
Encontra-se na National Geographic - Brasil de outubro de 2.001 a reportagem sobre a descoberta do exército chinês de terracota. Verifiquei algo análogo no estudo destas peças artísticas - termo aqui aplicado em generalização superficial - recentemente encontradas. Traz a matéria: "'Ninguém acreditaria que eram chineses se não soubéssemos de onde vêm', diz Wang Tao, da Escola de Estudos Orientais e Africanos, na Universidade de Londres. Ele compara o estilo das estátuas ao dos antigos gregos - e talvez essas figuras reflitam de fato intercâmbios culturais entre os Qin e os povos não chineses. Antes da unificação da China, o reinado Qin localizava-se no limite ocidental do território que seria abrangido pelo império, e os antepassados de Qin Shi Huang Di mantinham contato com várias tribos estrangeiras, cuja arte pode ter sido influenciada por trocas com a antiga Grécia" (pág. 40).
Ainda que para este último caso realmente haja o intercâmbio comercial a considerar, não deixo de julgar pretensioso o lugar comum de atestar a excelência das artes africana e chinesa tendo por critério - único, parece-me - a semelhança d'estas com a produzida no molde da helénica clássica. Bastide inclusive qualifica como "barrocos" os complementos de expressão artística d'um povo que ou não vivenciou esta fase, ou a vivência não se deu da mesma forma que os europeus e europeizados dos séculos XVII e XVIII. Como se a arte independente destes povos só fosse bela porque se aproxima dos padrões ocidentais. E por aproximar-se, pode não ser deles. Se não foi esta a intenção, primeiro de Bastide e segundo do professor Wang Tao, foi o que se transmitiu quando afirmaram que obras tão perfeitas têm possível vínculo com o mundo ocidental. Soa como negada ao artista nativo e alheio à academia a capacidade de produzir arte de valor.
Há no Brasil músicos inspirados em temas africanos. Já tive oportunidade de ouvir peças de Osvaldo Lacerda (1.927), Marlos Nobre de Almeida (1.939), Assis Republicano (1.897/1.960) e Valdemar Henrique da Costa Pereira (1.905/1.995). Todavia, afiguram-se homenagens aos negros e sua contribuição à formação do país, não assimilação profunda de sua cultura. No Uruguai encontramos o "candombe", uma dança dramático-religiosa - cujo nome revela a origem - antes limitada aos escravos e seus descendentes e hoje popularizada. Equivale ao samba e foi retractada várias vezes pelo pintor Pedro Figari (1.861/1.938).
O tema dos textos Fretown, Os Creóles Parecem Sair de Uma Gravura da Época da Rainha Vitória, e A "Burrinha" de Uidá é o comportamento dos negros de retorno à África após a alforria ou abolição da escravatura no país para o qual foram levados. Levaram daqui, por exemplo, festas como o Bumba-Meu-Boi - lá chamado de Burrinha - e no geral os costumes apreendidos dos antigos senhores. Na excelente biografia Tarsila - Sua Vida e Sua Obra escrita por Aracy A. do Amaral, há um testemunho da pintora referente ao príncipe Tovalú: "Lembro-me do príncipe negro Tovalú, apresentado por Cendrars. Tovalú era um fetiche disputado em todos os meios artísticos de vanguarda. Bem negro, com traços corretos da raça ariana, muito perfumado, vestia-se com elegância parisiense. Contou-nos que no Daomé, onde reinava seu pai, havia um bairro chamado Blesi, corruptela de Brasil, onde moravam os descendentes dos antigos escravos libertos que para lá voltaram levando a civilização (!), conservando os nomes de seus senhores, os Almeidas, Barros, Camargos e outros" (pág. 137).
Dá vontade de conhecer o livro. Li outras obras dos autores citados e acho também acertada a colocação sobre a intenção de valor negada ao artista nativo.