É difícil escolher a minha biblioteca básica, mesmo porque não acredito que exista algo assim. Toda boa biblioteca nunca pode ser básica. Ainda mais tentar resumir tudo em apenas dez livros. Por ser quase impossível, eu decidi diminuir ao máximo o escopo da minha escolha. Não sei se isso ajudou ou complicou.
Também estou me preparando para ter o meu pé puxado pelos fantasmas dos escritores esquecidos. Mas, são riscos que é preciso correr (será que é preciso mesmo?).
Bom, comecemos com o meu livro favorito na atualidade, Farabeuf, de Salvador Elizondo. O escritor mexicano é a minha mais nova paixão e Farabeuf, um dos livros mais revolucionários que já caíram em minhas mãos. A começar pelo tema que mostra as correlações entre o coito e a tortura. Além disso, a narrativa de Elizondo é voltada para si mesma, fechada, uma narrativa que sempre exige do leitor um desbravamento. A criação dos personagens em Farabeuf é um processo complexo. Nenhum personagem é concreto, com características evidentes. Todos caminham no limite entre existência e não-existência. As vozes são truncadas, nunca se sabe quem está falando, nem para quem. Elizondo só deixa algumas pistas do que está acontecendo e é isso que torna o leitor parte integrante da trama. Farabeuf é, com certeza, um dos livros mais instigantes de todos os tempos.
Um outro livro que não pode ficar de fora é Rayuela (O jogo da amarelinha) do excepcional Julio Cortázar. O escritor argentino marcou época com sua prosa experimentalista, criando um hipertexto. Um livro que pode ser lido de várias maneiras, pulando de um lado para o outro. Além dessa experiência, a história de Oliveira e a Maga é muito linda, com grandes momentos líricos. Na primeira parte, a genialidade de Cortázar consegue construir Paris como mais um personagem. Há dois capítulos, o 28 e o 41, que marcaram profundamente minha vida.
Há um escritor argentino, bastante pouco conhecido até mesmo no seu próprio país, mas que pode ser considerado o pai (tudo bem, um dos pais) do realismo fantástico que, anos depois, catapultou o continente para o estrelato literário. Estou falando de Macedonio Fernández e seu livro Museo de la Novela de la Eterna. O livro impressiona por vários motivos: seguindo a idéia joyceana de work in progress, ele demorou mais de 30 anos para ficar pronto. Bom, na verdade, ele não ficou pronto, mas o autor faleceu. Depois, segundo uma contagem que eu fiz, o livro tem mais de 50 prefácios, prólogos e introduções. Todos escritos pelo próprio Fernandez. É de uma ironia fina e com uma metalinguagem que impressiona. A Eterna (que é a própria obra) participa como personagem do livro. É a novela sendo personagem da própria novela.
Entre os neobarrocos, termo que marcou a literatura do continente nos anos 60 e 70, talvez o cubano Severo Sarduy seja um dos nomes mais conhecidos. No livro Maitreya, ele une barroquismo, filosofia ocidental e misticismo oriental. Essa obra é parte de uma trilogia não-oficial com Cobra e Colibri. Um dos aspectos fortes é a eroticidade da obra. Uma vez, Gabriel García Márquez falou para Sarduy que ele era o melhor escritor latino-americano e o menos lido. Aliás, isso é um caso comum.
Para os contistas, é difícil escolher um livro ou conto em especial, por isso vamos homenagear o conjunto da obra. O primeiro, que não pode deixar de estar em nenhuma biblioteca é Jorge Luís Borges. O velho bruxo criou uma das obras mais consistentes de toda a América Latina. Influenciou quase todo mundo que vale a pena ser lido e deve ter sido um dos primeiros escritores do continente a ter sua obra reconhecida em todo o mundo. O negócio é economizar uns 200 reais e aproveitar que a Obra Completa foi lançada em português, apesar de ser um crime não ler no original.
Outra escritora que eu conheci recentemente mas que me marcou com profundidade foi a Silvina Ocampo. Contista vigorosa e criativa, ela fez parte da "turma" do realismo fantástico mas seus contos são cheios de uma melancolia que a torna única no gênero. Qualquer livro dela vale a pena. Além de contos, ela foi uma poetisa de mão cheia, algo que lhe rendeu diversos prêmios.
Conversa na Catedral, Vargas Llosa. Essa foi uma obra fenomenal em termos de experimentalismos, os diálogos esquizofrênicos, misturados, retorcidos dentro da narrativa, criam uma sensação estranha. Esse livro ficou marcado na minha memória porque foi um dos meus primeiros contatos com estruturas não-lineares de narrativa. Aliás, preciso reler a obra. Já faz muito tempo.
Em termos de saga, um gênero que não teve muitos representantes nem no Brasil, nem na América Latina, Cem anos de solidão, é um dos livros mais impressionantes de todos os tempos. A saga dos Buendia é marcante, com sua confusão de nomes, sua fantástica Macondo e, o mais genial, é descobrir que García Márquez tirou tudo isso da sua própria vida. Assim, a leitura da autobiografia do autor também é obrigatória.
Se é difícil falar de um único livro quando estamos avaliando contistas, imaginem, então, os poetas. Há dois poetas que são simplesmente insubstituíveis e, coincidentemente (ou não), são chilenos: Vicente Huidobro e Pablo Neruda.
Com trabalhos bastante diferenciados, os dois chilenos criaram obras bastante significativas e de fôlego. Huidobro, do começo do século, rompeu com Modernismo de Rubén Darío e partiu para o Creacionismo, uma ruptura com o realismo e um pré-surrealismo. É difícil não ver na poesia de Huidobro, o início do furacão latino-americano que dominou o século XX.
Por outro lado, Neruda criou uma obra importante, com poemas com um fundo social e amoroso que ainda comovem gerações. Ganhador do prêmio Nobel de literatura (além dele, ganharam, no nosso continente, Octavio Paz, Gabriel García Márquez, Miguel Angel Astúrias e a Gabriela Mistral), Neruda também virou um símbolo da luta pela democracia no continente, tendo falecido (entre outros motivos, por desgosto) doze dias depois do golpe que derrubou o governo de Salvador Allende e instaurou a ditadura mais sangrenta do continente latino-americano.
E, finalmente, para romper com as estruturas, vou colocar meu décimo-primeiro livro: Dos veces junio, do escritor argentino Martín Kohan. Ninguém ouviu falar dele? Claro, esse é apenas o segundo livro do autor que tem exatamente a minha idade e, junto com a carreira de escritor, também dá aulas de Teoria Literária na Universidade de Buenos Aires. Kohan retrata, neste livro, os pesadelos da ditadura argentina, através dos olhos de um soldado conscrito. Mas Kohan não cai no realismo simplista, trabalhando (com elementos neobarrocos) a história. Seu domínio das técnicas narrativas e do espanhol é impressionante, tornando-o um dos escritores mais interessantes da nova geração latina. Além de tudo, é uma pessoa acessível e um bom amigo.
Bom, aqui está minha biblioteca básica. Oh, meu Deus, na porta do quarto já estão Lezama Lima, Cabrera Infante, Octavio Paz, Gabriela Mistral, Rubén Darío, Bioy Casares, Roberto Arlt, Horacio Quiroga, Ernesto Sábato, entre outros, só esperando eu fechar os olhos.