"Meu coração vai se entregar à tempestade"
(Maria Rita em "Santa chuva")
Com a morte de Elis Regina nos sobrou pouco em termos daquela força musical que brota de um repertório de qualidade, aliado à força pessoal do artista. Salvo alguns casos, mergulhamos no reino da música que alimenta o massificado e medíocre gosto comum. Como não havia possibilidade de comparação, fomos invadidos por uma pseudo-música que não nos tira de nós mesmos, que é incapaz de produzir pela força do seu estilo a mais forte, descontrolada e verdadeira emoção/fruição artística. Uma geração inteira viu-se, por isso, obrigada a ouvir uma música para menos que mediana - afinal, não havia parâmetro comparativo e a porcariada tomou conta das gravadoras/rádios/TVs. Mesmo grandes cantoras como Gal e Betânia, à força de não terem com quem competir, relaxaram muito no seu poder de impressionar (salve-se apenas Nana Caymi, integra até o fim, e a expressão vital e musical da jovem Cássia Eller).
Com o lançamento do seu primeiro CD e DVD, Maria Rita surge como um espectro para aterrorizar as cantoras de música popular brasileira. Podemos imaginar que todas (Marisa Monte, Zélia Duncan e outras) devem ter comprado o CD de Maria Rita e estão temerosamente se perguntando: "E agora, o que será de nós? Elis Regina voltou e estamos fadadas à categoria de medíocres cantorazinhas pasteurizadas pela indústria musical". Dotadas de uma pseudo-técnica e uma forma asséptica de aparição existencial/musical estas cantoras chinfrins estarão, a partir de agora, diminuídas no nosso juízo. Poderão e deverão ser avaliadas à luz de uma nova força musical, que surge do resgate da melhor tradição da nossa música e a partir de um repertório selecionado em função das necessidades das entranhas da cantora: dois elementos que marcam o estilo pessoal da grande Maria Rita.
A música bem comportada, racionalzinha, pasteurizada em seus sentidos patéticos e pré-determinados (para agradar a um público que consome música como mercadoria fácil e de terceira), está com seus dias contados. A força viva da emoção não calculada, o estilo pungente das variações vocais/emocionais e o acompanhamento de músicos criativos fazem do CD de Maria Rita uma luz no fim do túnel.
Sim, estamos nostálgicos de Elis Regina e seu sentido trágico da vida. Mas Maria Rita nos traz um dado novo, diferente da mãe. Uma alegria que vibra sem perder a força, uma tristeza que nos fala fundo do sublime em nós mesmos, um ritmo do qual não podemos escapar (tudo isso estava na mãe, mas, como dissemos, com uma tragicidade, talvez, maior).
Maria Rita canta de tal forma que exige de nós uma atenção, pode-se dizer, religiosa, que proporciona um mergulho total nos confins da emoção. Dado o envolvimento sincero da cantora com a poesia das letras, a sua capacidade de cruzar música e conteúdo cantado, a relação perfeita entre variações vocal e instrumental, sua música requer uma concentração que no final nos premia com um refinado sentido da verdadeira arte.
A aparição de Maria Rita acrescenta também um dado novo à música popular brasileira: os grandes compositores podem novamente se alegrar. Acabaram de ganhar uma intérprete à altura. Pense-se no caso de Milton Nascimento, que encontrou na voz de Elis uma parceira que só acrescentou à sua música. Agora Maria Rita se apresenta, indo ao seu encontro, trazendo para a música de Milton aquela força tão necessária ao cantor, uma espécie de força e fé que faz pensar na poderosa e sublime música religiosa colonial mineira.
É muito difícil traduzir em palavras uma experiência estética. Ser conduzido por uma voz, pelo sentido poético das letras e pelo timbre dos instrumentos a regiões obscuras de nós mesmos e, depois desta viagem, querer explicar o poder desta afetação parece um ato fadado ao fracasso.
O que interessa, para quem quiser ter uma prova do que se disse acima, é poder colocar o CD de Maria Rita para tocar e depois ouvir o que usualmente ouvíamos. Uma coisa com certeza vai anular a outra. Nós sabemos o que acontece ao nosso gosto quando nos acostumamos a beber o melhor vinho, das melhores safras, e depois, voltamos a beber o pior vinho, das piores safras: parece que estamos bebendo vinagre.
Também podemos apreciar as imagens do show de Maria Rita em seu DVD. Como não ser levado às lágrimas depois de ver/ouvir Tristesse, de Milton, na interpretação da filha de Elis? Sua presença no DVD começa suave, quase valsante, para terminar tragicamente, como seria Elis, se estivesse ainda entre nós.
Estamos tendo o prazer de ver nascer uma cantora de grande brilho, raro diamante num mar de lama comercial. Quem resistirá ao seu brilho radiante? A música popular está renascendo... e nós também. Neste momento, cale-se o mundo, que apenas Maria Rita cante.
Gostaria de terminar com umas palavras de Debussy: O grande público se compraz em obras de mau gosto. A partir do momento em que são atraídos pelo medíocre, é porque eles mesmos são medíocres. Quanto às belas obras, elas se imporão por seus próprios meios; e não é o grande público que importa nesse assunto, pois ele não entende nada disso.
"Meu coração se cansou de falsidade"
(Maria Rita em "Santa chuva")
É Jardel... você realmente se não tivesse nascido, deveria ter sido inventado!!! A paixão, o tesão, e a autoridade pelas coisas que você gosta e admira são excepcionais!!! Adorei a comparação ao vinho... demais!!! Você realmente tem um gosto apurado e sabe o que é bom!!! A Maria Rita veio para ficar, mas não desprezo as outras! Cada uma tem o seu valor, assim como você tem o seu!!!!!!! Adoro ler seus comentários e saber o que você pensa!!! Até mais.. abraço, Rose.
jardel,
adorei seu comentário sobre o CD da Maria Rita. concordo com você em tudo o que disse. não aguentava mais estas cantoras fabricadas pelas sanduicheiras das gravadoras. é isso. bom ataque! parabéns.
claudia
Jardel, realmente esse seu texto ficou fantástico. Você conseguiu traduzir em palavras todo o meu sentimento quando ouço ou vejo a Maria Rita. Quando a Elis morreu eu ainda era muito novo. Mas até hoje quando a ouço me emociono. E foi essa sensação de emoção que me tomou conta ao ouvir pela primeira vez essa grande Maria Rita nas participações em "Tristesse" e "Voa Bicho" no CD Pietá do Milton Nascimento. Alguns amigos estão dizendo que estou ficando fanático por ela, mas me sinto orgulhoso porque sou fã de alguém plausível e respeitável, de alguém que tem o dom de cantar e encantar, ou melhor, o dom de interpretar. Porque temos por aí muitas cantoras e cantores mas poucos intérpretes. Quiçá esse bebê que agora ela carrega no ventre seja uma menina para, no futuro, embalar os ouvidos de nossos netos e bisnetos.
Caro Jardel, fui ao show (BH) e tudo se confirmou: Maria Rita ri com alegria e tristeza ao mesmo tempo. A cada música que interpreta, vira única, a cada palavra, sílaba, tudo ganha um efeito musical que eu chamaria de combinação perfeita entre voz, instrumentos (ouça o piano e o baixo) e emoção. Afinal o que as pessoas tem contra a emoção? Ou tudo é mercadoria? O disco de Maria Rita mostra que não é, que podemos ainda acreditar na excelência musical das interpretes. Se Maria Rita não compor nada, diria que tudo que ela canta vira composição dela.
O seu texto é muito pungente, verdadeiro e provocador. Só acho que não é necessário citar outros nomes, pois Maria Rita não precisa de comparações. Mas respeito sua opinião. Abraços, mário alex rosa
Perfeito tudo. A Maria Rita, o disco, a emoção, as críticas, as palavras de Jardel, a tentativa da seleção e da divisão inúteis da nossa sociedade em "quem gosta e em quem não gosta de Maria Rita"; Surge uma emoção nova, para alguns, uma emoção de resgate, agora podendo ser vivenciada na maturidade de muitos.
Mas, cuidado, entre outras coisas, Elis era atormentada justamente pelos críticos e suas emoções... Dependia da ardência de suas opiniões. A Grande Elis hoje é unanimidade, mas como gostaria de tê-la visto livre de tudo isso!
Vejo a euforia da crítica como algo limitante ao artista. Maria Rita é um feliz talento. Maria Rita é tudo isso que você Jardel falou, mas não se esqueça de dar espaço para o seu próprio caminhar para que não venha assim impedir de permiti-la levá-lo a emoções outras que deseje compartilhar.
Desculpe o desabafo, é que não gosto de assistir à mesmice histórica: hoje queremos, colocamos no topo, amanhã quem sabe se teremos a capacidade de compreender a evolução daquele que ajudamos a colocar no topo. Quem sabe?
Minha mãe diz que estou louca e meio psicótica, meio anestesiada de tanto vivenciar e viver a música e fatos em volta da Maria Rita...
Acho normal para quem não pôde ter ídolos na adolescência e na juventude como ela pôde ter, aliás ela vivia atrás da Elis em festivais, ehehe, minha avó me contou antes de morrer que meu avô quebrava discos do Elvis e proibia a ela de ir a esses movimentos, detalhe, ela fugia, dizia que ia estudar na casa de amigas e lá se ia ela, quer pior?
E aí?
Eu não tenho festivais, não tenho a qualidade que ela tinha em sua época, mas tenho uma dentre todas e todos os que estão por aí e o nome dela é: MARIA RITA!!!
Bjinhos
Ela canta tanto assim? Conheço inúmeros casos de pessoas que se recordam de Elis Regin, viva e fenomenal, e choram em shows de Maria Rita. Acho que ela é uma baita cantora, melhor do que 95% das interpretes de sua geração, mas e Mônica Salmaso e outras? É fácil estabelecer como linha média da MPB Anas Carolina, Marisa Monte ou Ivete Sangalo e fazer uma comparação direta: mesmo o senso comum, aquele que aponta seu gosto sob os ditames das rádios, percebe que há uma gritante diferença. Mas, sinceramente, é para tanto? Ela é a única grande cantora do país? É droga para se consumir até a overdose? Maria Rita canta muito, tem uma rara sensibilidade para o repertório e é hábil em conduzir sua imagem. Mas que fique só na arte, não adentre a esfera do mito. Ainda é cedo.
Perfeito, Jardel. Não desmerecendo outros cantares, Maria Rita é uma singular e grata surpresa... Nossos ouvidos agradecem, e com certeza, nossas emoções também.
Quando alguem surge e de alguma forma impressiona, naturalmente e louvado. Neste mundo carente de densidade, e natural a exaltaçao. Ai misturam-se sentimentos de todos os tipos, emoçao, contrariedade, inveja, devoçao. Somente pessoas de talento especial provocam este efeito... E compreenssível todas as reaçoes. Maria Rita surge e assume-se como uma cantora que esta em principio de carreira, com muito a crescer. E começa muito bem, com um timbre que lembra Elis mas pode ser explorado de outras formas, atraves dos artificios de interpretaçao. Ela vai crescer com certeza! Fui ao seu show e e um pecado afirmar que ela nao tem "emoçao", como fez uma leitora abaixo em seu comentario. Afirmaçao estranha, pois que ser humano nao tem emoçao?? E se M. Rita nao tivesse emoçao ao interpretar nao provocaria reaçoes que estamos vendo... Acho que ela e seus musicos podem experimenar mais nos arranjos para que soem mais contemporaneos, mas do jeito que esta funciona muito! M. Rita vai inspirar novos talentos e motivar as gravadoras a apostarem novamente em qualidade artistica.
Maria Rita Moreno veio com certeza dar uma beliscada na musica popular brasileira, despertando a do seu sono profundo.
Sua voz nos causa ao mesmo tempo um arrepio funesto e um "frisson" de felicidade : ela ressucita a voz da nossa Elis tao amada ao mesmo tempo que faz renascer uma nova musa tocando em nossa alma.
Um grande futuro para Maria Rita ja deve estar programado pelas gravadoras, ela fara o seu caminho como tantas outras da MPB.
Lembro me de quando Marisa Monte lançou o seu primeiro disco em 1989. Uma verdadeira maravilha! Nao devemos nos esquecer da critica que a aclamava no final dos anos 80 e nem obstante que Marisa continua umas das maiores vozes da nossa musica.
Texto brilhante, consegue captar exatamente tudo o que Maria Rita é. Uma cantora que leva sua arte, tendo sua personalidade e sua interpletação, de uma forma que deixa claro o grande talento que tem. É claro que comparações com Elis sempre vão existir, mas quem é um bom entendedor de sua música e da obra de sua mãe percebe as diferenças. Muitas criticas são feitas, mas ninguém critica aquilo que realmente tem de ser criticado.
Mas, de qualquer forma, eu achei muito inteligente seu texto, e eu, como fã incondicional da Maria Rita, adorei.
É, o tempo é que faz o bom vinho. E o apressado come cru, já dizia minha bisavó. A Maria Rita transformou-se em decepção. Era apenas um espectro. Se mostrou tão péssima quanto as "fadadas à categoria de medíocres cantorazinhas pasteurizadas". Maria Rita e suas caras e bocas, até que é bonitinha, mas péssima cantora. Por fim aprendemos um grande lição musical: Nada que vem da indústria do entretenimento presta.
Alexandre, sou levado a concordar com você, que houve uma decaída. Achei que o drama da vida poderia ser o diferencial na postura musical dela. Ela está tranquila, (com ansiolíticos?), e a dor pungente que atormentava Elis não atormenta a filha.