COLUNAS
Terça-feira,
9/12/2003
Diálogos improváveis
Fabio Silvestre Cardoso
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Desde setembro de 2000, com o recrudescimento da Intifada (movimento palestino contra a ocupação israelense da Cisjordânia e da Faixa de Gaza), as relações entre israelenses e palestinos têm se tornado cada vez mais violentas. Isso porque as lideranças dos dois lados preferem as vias de confronto à diplomacia, que poderia evitar a morte de mais de 2.000 pessoas em pouco mais de três anos de conflito.
Dessa maneira, à primeira vista, pode surpreender o debate de idéias de alto nível entre um palestino e um israelense. Mais polêmico ainda se os debatedores são, de um lado, o crítico literário e franco-atirador Edward Said (1935-2003) e, de outro, o pianista e maestro Daniel Barenboim. Numa época em que a questão Israel-Palestina tem sido reduzida a bombardeios suicidas na Faixa de Gaza e a um sem-número de ações unilaterais dos dois lados, a leitura de Paralelos e Paradoxos - reflexões sobre música e sociedade, da Cia. das Letras, é primorosa: o livro versa não apenas sobre as música e literatura, mas também trata de política e da espinhosa relação entre palestinos e israelenses.
Destarte, é preciso ressaltar a linguagem acessível do livro. Na verdade, o formato lembra uma entrevista ou, como de fato foi, uma série de conversas. Entretanto, esse elemento não extrai a importância dos temas em questão. Há, sim, verdadeiros diálogos pertinentes, onde a razão se sobrepõe ao polemismo fácil e à verborragia. É o que acontece quando Barenboim e Said discutem sobre a interpretação das peças musicais, não se limitando ao aspecto técnico deste ou daquele compositor, pois ambos abordam características únicas que pertencem à história de vida de cada um. Assim, o maestro relata: "A música proporciona a possibilidade de, por um lado, escapar da vida e, por outro, entendê-la muito melhor que em outras disciplinas". Enquanto o crítico rebate: "(...) hoje em dia, ao menos no ocidente, a música está separada das outras artes. A música requer um tipo específico de educação que a maioria das pessoas simplesmente não recebe".
Outro ponto alto do livro é a opinião de Barenboim acerca da efemeridade do som. Segundo ele, embora o mundo atual não permita que as coisas sejam assim, o aspecto da irrepitibilidade musical é tão profundo quanto pessoal. Ainda que a apresentação se repita no dia seguinte, a execução será diferente. Said não só concorda, como afirma que o concerto "dita a lógica de ir do começo ao fim". Como em outras ocasiões no decorrer do livro, a música serve como ponto de partida para outras questões importantes, como literatura e artes, sem que a linha de raciocínio seja quebrada. Isto é, os temas se alternam de forma recorrente e os debatedores estabelecem alternativas e conexões valiosas, seja para o campo intelectual, seja para o campo das ações que possam ser tomadas.
Nesse sentido, é interessante observar a forma como o maestro se destaca quando se propõe a analisar assuntos fora do seu "campo de trabalho". Não é apenas mais consistente em seus argumentos, como foge das comparações sem sentido. Exemplo disso acontece quando Barenboim faz uma analogia precisa entre a composição musical e a criação literária: "Você tem de comparar o escritor com o compositor; apesar de que para o compositor o objetivo final é, sob muitos aspectos, a execução das suas obras." Said, por sua vez, nem sempre consegue corresponder com o mesmo brilhantismo, talvez porque se mantenha fiel às correntes acadêmicas. Ainda assim, alguns de seus paralelos dão o embasamento teórico necessário para esse tipo de diálogo, como: "Quando estou escrevendo e falando sobre as obras do passado, o que mais me interessa é tentar explicá-las e apresentá-las, tanto quanto possível, como criações de sua época."
Quando o assunto é política, ambos apresentam seus argumentos, porém não agridem as respectivas posições. Sobre o assunto, Barenboim chega a defender uma proposta inusitada, mas que não deixa de ser interessante: "Acho que um conflito dessa natureza não vai se resolver só por meios políticos, por meios econômicos ou por acordos. Todos devem ter a coragem de usar soluções artísticas, por assim dizer". Said concorda com a posição do músico, muito embora suas explicações para isso pertençam mais ao mundo das idéias do que ao mundo material.
Além de Barenboim e Said, uma terceira pessoa, Ariel Guzelimian, aparece - poucas vezes, é verdade - como uma espécie de mediador, muito embora sua participação não seja percebida ao longo do livro. Mesmo assim, alguns de seus comentários servem como linhas-mestras para que o debate seja plural, mas não caótico. Uma dessas breves aparições é quase uma síntese das discussões presentes no livro: "Imagino que essa idéia seja um elemento fundamental da amizade entre vocês, porque as suas histórias inevitavelmente se entrelaçam e, não obstante, vocês têm perspectivas muito diferentes. Pelo que vejo, um dos prazeres do seu diálogo é lutar com os paralelos e os paradoxos."
Para ir além
Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo,
9/12/2003
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