Horas desperdiçadas no trânsito, em ônibus e metrôs abarrotados ou dentro dos carros, sob o terror dos assaltos; ao redor a fumaça e a sombra dos prédios. E mais horas e horas e horas trabalhadas, horas não-registradas, horas-extras não remuneradas. A desigualdade espalhada no mapa e nas esquinas, o desemprego, a miséria. O barraco e a loja de luxo, Itaquera e Alphaville. Racionamento de água, de energia elétrica. Exaustão. Filas, filas no banco, nos órgãos públicos, filas para se divertir, nos restaurantes, nos cinemas. Assaltos, chacinas, tráfico. Favela e ostentação, partes da mesma violência; a violência tornada rotina.
Fácil pichar São Paulo, cidade difícil de habitar. Fácil também se acostumar. Só me dei conta do quanto São Paulo é difícil quando fui morar noutra cidade, Rochester, mais simples, segura e amena. No início a novidade de viver sem estresse me fez pensar em São Paulo com aversão. Passaram-se 4,5 anos, e a cidade agora faz 450. E eu, ainda à distância, chamada à pena, esperando brotar do teclado um manifesto contra a cidade da desigualdade, peguei-me surpresa em devaneios, desviada do manifesto por me dar conta de que sentia saudades – sim, saudades de São Paulo.
Percebo então que as saudades não são novas – nem meu amor pela cidade. Lembro que, quando aí morava, já me perdia em suspiros pelas fachadas elaboradas do centro, apaixonada pelo romance assombrado dos palacetes arruinados nos Campos Elíseos, pelo tom do sol de inverno nas árvores do Largo do Arouche. E lembro que misturava a essa admiração a minha experiência na cidade, vivida com excitação, alegria, curiosidade, apreciação. Sim, eu me enfurnava nas fieiras de edifícios dos Jardins, fitava o céu onde os prédios pareciam se unir em perspectiva, fechando-se sobre a rua como uma aléia – expressionismo paulista. E, claro, no cume da subida, os arranha-céus da Paulista, avenida que conheci tantas vezes por inteiro, a pé, de carro, de ônibus, metrô.
Ainda adolescente admirava cobiçosamente as casas e prédios modernistas espalhados na cidade (embora eu ainda não os conhecesse assim, pelo nome): sua pele de concreto, às vezes lisa e impecável, às vezes marcada pela textura das fôrmas de madeira como as linhas da palma da mão; os rastros da ferrugem escorrendo pelos cantos das janelas, imensos olhos de vidro... Foi só depois, quando fui estudar arquitetura e visitar outras cidades, que aprendi que essa arquitetura é uma de nossas conquistas locais, a chamada “Escola Paulista”.
Também em lugares anônimos, feios, eu guardava afetos insuspeitos. Na desordem do meu bairro, Moema, à época atulhado de canteiros de obras, trânsito, prédios de todo estilo, eu, saída da infância, descobrira minha própria mobilidade, e com ela passara a explorar quarteirões, papelarias, videolocadoras, docerias. Fiz-me conhecida de balconistas e falei com desconhecidos na rua. De fora, admirava locais que não freqüentava, e que exerciam um fascínio estranho: botecos de esquina com balcão de fórmica e homens bebendo pinga, barbearias mínimas com pisos de pastilha e cadeiras antigas. A avenida Ibirapuera inóspita, ainda famosa por suas casas de samba e cantinas – essa parte da avenida morria, necrosando em construções gradualmente abandonadas, sujas, decaindo, enquanto a nova avenida se incubava nos planos de investidores. Essa parte nova, hoje, toma quadras inteiras com escritórios, hotéis, flats, vidros metálicos e arcos coloridos escalando o céu – arquitetura “pós-moderna”.
Descobri aos poucos como cultivar meu apreço pela cidade, onde nela encontrar o espaço para fazer crescer meus interesses: o deleite dos filmes estrangeiros e estranhos do Elétrico Cineclube, o Cinesesc, a Sala Cinemateca com o piso xadrez, o Mis, o Belas Artes – nessa época ainda não tinha Espaço Unibanco e ainda não era moda freqüentar. Nos cafés desses cinemas eu achava um pão-de-mel embrulhado ou um pão-de-queijo solitário na vitrine, e, quando eu conseguia convencer algum amigo a me acompanhar, sentava para um sanduíche no bar mais transado do Elétrico.
Sem carro, eu ia às sessões da tarde e procurava programas que pudesse fazer de dia, de ônibus. Foi assim que achei as matinês do Teatro Municipal, que maravilha música no domingo de manhã, ainda mais no teatro restaurado que encarnava para mim o centro de São Paulo. O teatro foi mesmo a minha porta de entrada para essa parte da cidade que eu crescera conhecendo pelas janelas do carro e pelos relatos embevecidos do meu avô. O centro sempre me parecera inatingível, separado de mim não só pela fama de crime e perigo, mas também pela barreira do tempo carregando sempre mais longe os encantos de uma sociabilidade antiga, encenada em frente às fachadas ornamentadas e dentro das salas de cinema rebuscadas, onde se ia com roupa de domingo e de onde se partia para confeitarias finas. Quando voltei ao teatro restaurado, imerso na nostalgia dessa época, ao mesmo tempo adentrei o centro presente. Principiei a descobrir seus encantos novos: as calçadas vibrantes de gente diversa, de todo tipo, se estreitando entre os tabuleiros de camelô coloridos, a cor da lona sobre as barracas filtrando a luz nas ruas mais estreitas: centro azul, vermelho, amarelo...
De dia, a pé, tinha também os museus para visitar. Eu ia ao Masp para ver as exposições e, claro, para comer nas mesas coletivas do “bandejão chique”. Soltava suspiros ingênuos diante das obras, elegia meu Van Gogh favorito, que beleza ter esses quadros na minha própria cidade! A minha cidade!, e eu olhava pro lado pelas janelas, e lá estava ela enquadrada, São Paulo – uma vista de asfalto carros e prédios, a avenida. Era tão bonito estar no museu e ser lembrada da presença da cidade pelo reflexo que se esgueirava nos suportes dos quadros – os suportes de vidro que a Lina Bo Bardi fez justamente para que a arte flutuasse assim no meio da cidade, nessa caixa de vidro suspensa que era o Masp quando ainda nem tinha pernas vermelhas.
Um dia peguei na tevê por acaso o Masp Movie, o filme de animação que revelou para mim que a cidade existia também fora de si, na arte e na percepção de gente que compusera poemas, canções, filmes, contos e quadros. A cidade como representação... um mundo novo, uma outra cidade inteira me esperando, ou melhor dizendo infinitas cidades por descobrir, explorar, devorar avidamente. E muitos anos depois eu transformei essa descoberta no meu primeiro trabalho científico, que desse modo foi também um trabalho de paixão pessoal – a cidade de São Paulo na literatura modernista, as décadas de 20 e 30. Que maravilha! Não é bem que nos escritos eu tenha surpreendido uma cidade desconhecida – não, o que ocorreu foi ver ecoados, respondidos, os meus próprios sentimentos, foi reconhecer a minha própria São Paulo nos poemas de quase um século atrás – e, com isso, reconhecer a mim mesma. Mas reconhecer também é sempre aprender um pouco, ou muito – conhecer de novo, e como se tudo fosse novo, e com isso abrir vistas desconhecidas.
Na poesia do Mário e do Oswald de Andrade, a cidade enlouquecia, despejando arranha-céus, luzes noturnas, a turba inédita, festas frenéticas; a cidade invadida pelos sinais de avanço: telefone, elevador, automóveis, gramofone, jazz, som de buzina. Nesses poemas São Paulo era um arroubo, estonteante, violenta, similar ao meu próprio tempo, o fim do século. Eram os olhos dos autores aumentando o progresso de uma cidade que, para nós, pareceria pacata, provinciana? Talvez o choque do novo fosse o mais importante: o efeito irradiado, magnificado dessas mudanças em si modestas ou limitadas. Os modernistas descreveram a cidade desejada, justapondo suas visões de metrópole à São Paulo existente. Assim passou a existir também essa cidade moderna, mito, voraz e crescente.
Reparo que meu relato tem muito em comum com essa prospecção do futuro feita pelos poetas modernistas. Eu também arranco das pedras da cidade ao meu redor a forma da minha cidade desejada, ou lembrada. A São Paulo de minha memória, que é a única que posso apresentar, também já não há. Não só porque a afeição me prenda aos meus “anos de formação”, uma década atrás e mais; nem só porque eu já não viva em São Paulo há quatro anos e meio. Mas também porque não podemos habitar uma cidade sem fazer dela um pouco do que somos; sem recortar da paisagem urbana os pedaços que nos fazem sentido, e remontá-los na ordem das nossas vontades e dos nossos reveses. Sem perceber, voltamos o olhar para determinados pontos, pois é mesmo impossível abarcar tudo de uma vez só; e ao jogar luz sobre certos lugares, esquecemos o resto no escuro. Nossa cidade vivida é assim parcial e incompleta, em parte inventada, em parte esquecida, em parte aumentada com pedaços de outras cidades.
Foi em São Paulo que se formou minha maneira de viver uma cidade. Hoje, morando em Berlim, às vezes dobro uma esquina e encontro a luz do sol de inverno das árvores do Arouche, ou o espectro elegante da Avenida São Luís. Trago comigo, como pela língua materna, o amor por meu lugar natal e de criação. E isso, como a memória, não é uma escolha.
Ser nordestina não foi escolha consciente. Ainda muito pequena, criava fantasias morando em São Paulo. Cresci e as fantasias não passaram de sonhos frustrados. Comemorei os 450 anos de SP como se paulista fosse. Lendo o seu texto, fiquei fascinada, pois era exatamente assim que imaginava essa gigante cidade.
Parabéns! qualquer paulistano sentir-se-a orgulhoso do seu texto (poesia).
Achei um pouco estranho chamar os prédios da Paulista de "arranha-céus". Um arranha-céu tem que ter 200m de altura, isso quer dizer que em São Paulo e no Brasil inteiro, não existe nenhum arranha-céu.
Prezado Marcel,
Vários dicionários definem “arranha-céu” como um “prédio alto, de muitos andares” — não só em português, como em outras línguas também. A definição técnica a que você se refere não exclui o uso corrente, conotativo, de “arranha-céu” como designação de prédio alto em geral, sem medição específica de altura.
Se formos entrar nas especificações, há quem diga que o arranha-céu tem de ter no mínimo 152 metros (500 pés) de altura, e não 200. E o primeiro arranha-céu do mundo, em Chicago, tinha 42 metros (138 pés) (o edifício “Home Insurance”, de William Lebaron Jenney). Assim, vemos também que o significado de arranha-céu não é um valor absoluto, auto-suficiente, mas sim um conceito dependente do contexto social, tecnológico e cultural, que tem se transformado ao longo do tempo e varia de acordo com o propósito do texto.
E qual o propósito do meu texto? Com a palavra, não pretendo denotar a especificação técnica do termo, pois este não é um texto sobre engenharia. Pretendo, sim, evocar um estado de espírito e apresentar uma vista literária e subjetiva da cidade. Meu uso conotativo, que aliás, como dito acima, está correto de acordo com o léxico oficial, também se justifica pelo uso da linguagem figurada do texto.
Além disso, vale lembrar que a palavra em questão é usada popularmente em referência à Avenida Paulista, não apenas por mim. E, finalmente, acredito que fixar a discussão nesse detalhe de meu texto foge tanto ao espírito geral quanto ao tema da coluna.