São Paulo - como um gigante horrível - é enorme e disforme. E está com a pele destruída por buracos e verrugas. Por dentro, só pode estar podre: exalando, com barulho e força, um incômodo ar para se respirar. Pode-se observá-la por todos os ângulos e distâncias: não há miopia que amenize seus defeitos. Nem plástica, como pretendem certos prefeitos(as). São Paulo nasceu, como alguns bebês, bonita e simpática; mas não se cuidou bem: e hoje seus defeitos são provavelmente definitivos. Assim como o fato de eu ter nascido aqui. Aconteceu - e certas coisas não se corrigem mais.
Se aproveitam, na medida do possível. E acho que, como pude, conheci e desfrutei São Paulo, apesar dos pesares, que são muitos. Até hoje, foi em São Paulo que passei a maior parte da minha vida, com intervalos periódicos e pequenos, de um a seis meses. É impossível, ainda assim, conhecer São Paulo completamente. Eu não conheço. Certos aspectos - a violência e o sotaque, por exemplo - são constantes, passando, com mais ou menos intensidade, por todos os bairros. Mas só. A Móoca é totalmente diferente do Morumbi - que, por sua vez, não se parece com os Jardins. Não escrevo, portanto, sobre a cidade de São Paulo em geral, mas sobre uma em particular: a minha cidade, em que nasci e cresci, e que ainda hoje frequento.
Por onde passei, para que se esclareça o que conheço, e de onde falo, e falarei: nasci morando nos Jardins, na Rua Bela Cintra; me mudei, aos 6 anos, para a Rua Sampaio Vidal - que a prefeita Marta Suplicy pretende destruir -, no Jardim Paulistano; fui depois, aos 12, para Alto de Pinheiros, o bairro mais agradável que conheço; voltei, aos 19, para os Jardins; e agora, aos 23, vim morar em Higienópolis, quase dentro do shopping homônimo. Freqüentei sempre o Morumbi, por causa do clube e da academia em que treinava tênis. E, da infância à adolescência, atravessei anos na Vila Nova Conceição, onde está a escola em que estudei, até preferir outra, aos 15 anos, em plena Av. Paulista. Visitei médicos e dentistas por aí: Itaim, Vila Olímpia, Moema. Com três irmãs para dividir um carro e um motorista, com atividades freqüentes e distantes, passei horas travado no trânsito paulistano: dormindo, com o banco deitado, ou ouvindo incríveis casos da periferia paulistana, de um dos mais de 15 motocas que trabalharam em casa.
A vida em São Paulo, separada em bairros, é provinciana, como em qualquer outra grande cidade. Só pode ser assim. O cidadão se defende da multidão e da imensidão paulistana definindo o limite territorial de suas atividades, para não inviabilizar sua rotina diária. Não foi diferente comigo - mas acho que, relativamente, até que me locomovi muito. O primeiro inconveniente de São Paulo - segundo o qual nosso roteiro se ajusta - é o trânsito. Só que ele não mata. E, mesmo que exija uma paciência desumana dos motoristas, o desgaste provocado pelo trânsito é incomparável com a violência. São Paulo, nesse sentido, está - para se dizer o mínimo - inabitável. É um absurdo que seja necessário controlarmos nossos hábitos porque um viciado pode nos surpreender numa esquina qualquer, e inexplicavelmente nos enterrar uma bala nos miolos. Isso é terror. Que não apenas fere e mata, mas impõe uma carga pesadíssima de pressão psicológica em inocentes, que - por precaução justificável, e não neurose gratuita - são obrigados a tomar os cuidados necessários. E essas necessidades atrasam nossa vida.
Não acho que São Paulo é, como querem alguns de seus habitantes, uma cidade culta e cosmopolita. Porque - não adianta forçar - seus habitantes não são. O que é compreensível: não existe cidade assim em país de terceiro mundo. São Paulo, no máximo, tenta ser, o que às vezes lhe faz cair no ridículo, adotando e exagerando modas atrasadas, da arquitetura ao vestuário, sem conseguir esconder seu vergonhoso contraste na renda. A civilização, se houvesse, não se esconderia entre muros tão altos. Disse alguém - Bernard Shaw, se não me engano -, com toda a razão: grandes homens não querem apenas viver em casas bonitas, mas em cidades bonitas também. A feiúra de São Paulo é eloqüente.
Encaro a vida aqui, então, como uma aventura, como se estivesse em Luanda ou Bangkok. O dia-a-dia pode parecer, de vez em quando, entediante, mas normalmente não é, se consideramos cenas e situações freqüentes em São Paulo - e apenas aqui, senão em poucos outros lugares do mundo. O problema - se se pode chamar assim - é que nos acostumamos. E aceitamos o exótico e emocionante como se fosse comum. Não é.
Afora, porém, a aberração estética e a violência assustadora, ainda é possível se divertir em São Paulo - já que estamos aqui. A cidade, de um lado, oferece opções baratas ou gratuitas, pouco aproveitadas por quem se acostumou a pagar por entretenimento. E, de outro, uma variedade de programas caros, para quem prefere se afastar da confusão - e se fechar num mundo particular, às vezes bonito e confortável.
A lista dos primeiros passeios está disponível periodicamente em revistas semanais, sob o invariável título: "Como se divertir muito gastando pouco": Parque do Ibirapuera, USP, Pinacoteca e Parque da Luz, Masp e Mam, feirinhas do Masp e da Benedito Calixto, apreciação de esculturas públicas, caminhada por bairros supostamente agradáveis, etc. E, na segunda lista, estão sempre lá: os mesmos restaurantes, shoppings para compras, shows reservados, etc. Listas assim são de uma falta de criatividade irritante. Mesmo quando se pretendem alternativas, e recomendam pizzarias escondidas e bares anônimos. Mas mesmo assim acho que é mais proveitoso citar o que compensa em São Paulo do que o que prefiro dispensar. Porque eu, pelo menos, dispensaria quase tudo - mas não certas preciosidades, impossíveis ou difíceis em outras cidades, de Londres a Dar-es-Salaam.
Como o hábito que tenho de, sozinho no carro, abrir a janela, e ouvir o ruído dos carros como se ouvisse uma orquestra perfeita, imaginando que a poluição exalada é resultado do cansativo exercício dos músicos - correspondente ao suor de um baixista concentrado. De fundo, Bach é a melhor opção, acompanhando, com suas paixões matemáticas, o ritmo mecânico dos motores. Aprecio essa situação tanto no trânsito atrapalhado da Av. Brasil como num fim-de-semana tranqüilo, na Marginal Pinheiros. O carro pode eventualmente balançar com buracos, e o CD voltar, mas faz parte, como uma buzina inesperada: tudo, nesse momento, é justificável, e qualquer alteração súbita é sempre o improviso de um músico atrevido. Os aviões, nesse espetáculo, completam o cenário, com sua imagem em movimento no céu - que, apesar de atrasado, também contribui sonoramente para essa composição musical.
Os aviões, aliás: é uma emoção renovada pousar em Congonhas, ou assistir a pousos, de jatos passando a 50 metros de edifícios enormes. Parece que vai bater. Mas não bate, normalmente, e a aflição passageira transforma-se, depois da aterrissagem, num delicioso alívio. O aeroporto, hoje quase no centro da cidade, é único, com suas colunas retrôs, e serve de ponto casual para encontro aos freqüentadores da ponte-aérea. É um programa gratuito, do chão, ou lhe custaria uma passagem de volta - de onde estiver no Brasil para São Paulo, reservando a janelinha. Mais legal do que uma tarde no Play Center.
Não se encontra, suspeito, nem em Goiás, um Rancho Goiano tão goiano - no ambiente e na comida - como o da Rua Rocha, quase na esquina com a Avenida Nove de Julho. É um achado: uma mistura de freqüentadores paulistanos e goianos, tragando pinga e cigarros da região, e ouvindo, claro, música caipira legítima e ao vivo. Para quem, como eu, gosta de música sertaneja, é uma maravilha. Sem contar os bares adjacentes, que reúnem um público, à sua maneira, encantador - como porteiros no tempo livre jogando caça-níquel e prostitutas baratas em horário de folga, se é que isso existe.
Tenho uma relação inconstante, de amor e ódio, com o Aeroporto Internacional de Guarulhos e com a Rodovia dos Bandeirantes, dependendo do meu rumo - se saindo ou chegando de São Paulo. Quando peguei o carro sozinho, pela primeira vez, para Barretos, numa sexta-feira ensolarada, foi como se deixasse, ao mesmo tempo, uma cidade e uma idade que me prendiam a responsabilidades que eu não queria mais. Em São Paulo, de carro, estamos presos numa bolha metálica, o que é uma sensação muito desagradável. Mas isso, na estrada, num dia bonito, sozinho, desaparece, para mim. Em Cumbica, se saindo, nunca me senti mal, ao contrário: não compreendo a tensão ou a tristeza de certos viajantes solitários. Os instantes que antecedem um destino inédito ou remoto sempre são entusiasmantes - e foi nesses pontos, na Bandeirantes e em Cumbica, que na maioria das vezes os aproveitei. Claro que, até hoje, sempre voltei dos meus destinos, e confesso: com uma certa melancolia, quando o trânsito aperta na rodovia ou o céu, do avião, se revela sujo e escuro.
Repito: se comparada a centros civilizados, São Paulo é pobre e feia, mas não é com Paris ou Roma - que estão, aliás, em decadência - que ela deve ser comparada. Nem com Varsóvia ou Buenos Aires, capitais que com facilidade poderiam estar num país desenvolvido. É com Xangai ou com a Cidade do México: que são centros econômicos de países subdesenvolvidos, e nada mais. E, por isso, têm os seus impulsos de urbanidade, mas não enganam: estão, sempre, e estarão, fechadas no México, na China ou no Brasil - e isso é indisfarçável nos seus traços. Pequenas correções plásticas não substituem fatalidades geográficas.
São Paulo é mesmo um gigante deformado. Mas, eu diria, um gigante simpático. Desengonçado e antipático, às vezes, mas com bom coração. São Paulo não nasceu assim: aprendeu, com o tempo e as más companhias, seus modos grosseiros. Que, mesmo que reprováveis, não me parecem naturais. É que a cidade suporta, há décadas, uma rotina dura e pesada, que consumiu sua delicadeza original. E endureceu sua superfície. Repare, porém: apesar de sua grotesca aparência, São Paulo pode se revelar, quando menos esperamos: e soltar, tímida, um breve sorriso, de alguém que já foi, e tenta ser novamente, simpática. Quem sabe consiga, nos seus próximos 450 anos.
Eduardo!!! Concordo com vc em muitos aspectos, mas sem dúvida SP, como toda cidade grande tem os seus problemas, mas também tem os seus encantos e peculiaridades. Continuo morando no Rio, mas adoro SP. Inclusive estive em SP este final de semana, mas não tinha o seu telefone. Um abração, Emmanuel (estudei com vc no Canadá)
Caro Eduardo,
Para quem fala que conhece aspectos de várias cidades do mundo você é um cara bem paulistano. Como afirmo isso? Só um legitimo filho de Piratininga fala que ver aviões pousarem e Congonhas é um programa bom e barato.
Um abraço, Otávio
Adorei o texto. Interessante como essa cidade magnífica pode imprimir impressões tão díspares em diferentes pessoas. Eu morei em Sampa até 81 e gostava muito de lá, apesar de alguns aspectos abordados por ti já estarem de evidenciando mas, depois de mais de duas décadas fora da capital (moro no interior de Sampa, acho que não saberia morar em outro estado) e indo, de quando em vez, à cada vez mais problemática (e amada) Piratininga, não consigo deixar de achá-la deliciosa e fascinante. Ainda assim, acho que não gostaria de voltar a morar lá. Penso mesmo que Sampa pode ser muito melhor apreciada quando se é um visitante, principalmente quando esse visitante a ama com todos os seus defeitos, e gosta de algumas coisas que, nesse país, só podem ser plenamente degustadas nessa desvairada megalópole Latino-americana.