- Gostaria primeiramente de agradecer à senhora por ter aceitado nos conceder esta entrevista.
- O prazer é meu. Sabe, é engraçado: as pessoas adoram falar sobre mim. Todo dia eu ouço: na rua, no shopping. Mas pouca gente vem falar comigo. Acho isso engraçado.
- Nem agora, no seu aniversário?
- Não, nem agora. (Suspiro e pausa). Acho que eles pensam que eu não tenho muito o que dizer. Devem estar certos, não sei.
- Bom, agora, a senhora tem a chance de falar o que pensa...
- Ótimo!
- Prá começar... qual é a primeira memória que a senhora tem? De quando era criança, de sua infância?
- Ah, faz tempo, muito tempo mesmo... Difícil. Eu lembro daqueles índios. Os índios não viviam lá onde os jesuítas foram construir a igreja. Viviam mais perto do rio. Era divertido. Eles eram muito tranquilos. Ficavam pescando. De vez em quando iam para as bandas do Tietê - era uma viagem naquela época! Eles iam visitar primos e primas. Também muito antes, havia outras tribos, houve até brigas. Mas isso eu fiquei sabendo pelos historiadores. Quando eu nasci, já nasci com os jesuítas. Eles eram bem-intencionados, acho. Mas eu gostava mais dos índios.
- Por quê?
- Os índios eram mais quietos. Aqueles padres chegaram falando demais. Por mais difícil que seja acreditar, eu gosto de silêncio. Hoje, ele é tão raro... minha cabeça anda cheia de barulhos, vozes, gritos. Mas ainda há momentos de silêncio. No Parque Ibirapuera, de noite... ou mesmo no centro, em alguns becos, em noites de chuva, lá perto da Rua Direita, perto dos prédios altos dos bancos, num domingo à noite. Há silêncio, ou o barulho da chuva. Num domingo à noite. Mas os jesuítas chegaram, e o barulho começou. E o barulho só atrai mais barulho.
- A senhora imaginava que ia se transformar na segunda maior cidade do mundo?
- (Risos) preciso fazer uma dieta, né? Bom, no início não. Por uns trezentos anos, eu fui crescendo normalmente. Até meados do século XVIII, as coisas iam bem. Aí inventaram de me transformar em capital, e me viciaram... Imaginei que os bons tempos iriam acabar, mas não imaginava que eu ia crescer tanto...
- A senhora falou que viciaram...
- É, me viciaram. Me viciaram em café. Não é nenhuma surpresa, eu sempre admiti isso. Acho que foi o fato de me viciarem em café que foi o mais importante nesse meu crescimento. Chegou um ponto, no final do seculo XIX, que minhas veias tinham mais cafeína do que sangue. Eu não conseguia ficar quieta. Minha pele foi se enchendo de espinhas - pequenos postes de luz, primeiro a gás, depois elétricos. As rugas também começaram a aumentar, com estas avenidas todas, a pele começou a secar, quando encanaram os rios no centro. E os rios que eles não encanaram, ficaram sujos, ficaram feios. São esses melanomas aqui (mostra em silêncio os rios ao repórter).
- Mas a senhora acha que o crescimento trouxe alguma vantagem?
- Não sei (pensa por alguns segundos). Eu gosto de ser conhecida. Conhecida fora. Vou te contar um segredo: eu morro de ciúme de minhas irmãs estrangeiras. Sei que dificilmente vou conseguir chegar aos pés de minha irmã japonesa - nossa, ela é tão imensa - mas sempre gostei de me comparar com Los Angeles, ou com a Cidade do México. Los Angeles e eu somos muito parecidas, temos essas rugas imensas... México e eu, por outro lado, somos igualmente gordas, e volta e meia nos comparam. Eu acho que eu sou mais bonita. Não fico sentada em vulcão extinto, tenho ainda essas florestas no norte e o pessoal que mora em mim é simpático, apesar de todos os problemas. Não que os mexicanos não sejam, mas eu sou mais meus paulistanos.
- Qual é o seu principal defeito, na sua opinião?
- Eu tenho muitos. Muitos... Mas acho que o principal é a falta de auto-estima. É terrível. Porque, se eu confiasse um pouco mais em mim mesma, se eu parasse de ver todos esses defeitos que eu te falei... se as pessoas me ajudassem, se elas me ajudassem, eu... (pausa. Os olhos se enchem de lágrimas).
- As pessoas que moram na senhora são culpadas por seus defeitos?
- Não, não exatamente... Eu não culpo ninguém. Mas não gosto que me culpem. Eu sou assim. As pessoas...(Pausa) Elas vêm para cá cheias de sonhos. Eu não... não é da minha natureza fechar as portas. As pessoas podem vir, eu as recebo. Eu as instalo onde for. Veja! Estou perdendo minha saúde por isso! Os meus melhores dias, nos feriados, são maravilhosos! Eu me sinto tão leve quando as pessoas vão viajar! Mas elas voltam, e elas sempre vão ser recebidas por mim. Algumas não têm nada, nem dinheiro, nem educação, e eu as coloco onde posso. Lá em Heliópolis, no Morumbi, preenchendo cada terreno, nos manaciais do sul, até no meu calcanhar, em Engenheiro Marsilac, ou na minha nuca, em Perus, ou na ponta do meu nariz, em Itaquera, Guaianazes. O que eu queria é um pouco de reconhecimento, entende? Que as pessoas entendessem que elas são bem-vindas aqui. Que eu posso ser feia, suja, imensa, com estas espinhas.... Mas eu nunca, nunca vou me recusar a dar uma chance a elas. Quero que elas sejam felizes. Olha só: recebi os imigrantes da Europa no início do século XX. Eles prosperaram: têm padarias, restaurantes, empresas diversas. Eles se deram bem. E nem eles... nem eles me agradecem! São todos uns... ingratos.
- Mas...
- Não. Não todos. Que besteira, eu não posso falar isso! Se há esses canalhas que pensam que eu sou uma... que vêm aqui para ganhar dinheiro e não têm apreço por mim, há também meus filhos mais queridos. Aqueles que olham meus problemas e se preocupam. Geralmente são pessoas mais educadas. Algumas, viram minhas outras irmãs grandes e entenderam que todas têm defeitos. Eles vão e voltam, passam um tempo com minhas irmãs e voltam, esses meus queridos. Voltam e falam: "Você é a melhor cidade do mundo, eu te amo e não posso ficar longe de você!" (risos) Eles arregaçam as mangas e me ajudam a seguir o caminho das minhas irmãs para solucionar alguns problemas.
Há também os que não têm tanta educação, mas que fazem o trabalho mais sujo. Eles trabalham duro, me reformam, me ajudam a conter minhas doenças, me ajudar a ficar mais calma, mais segura. Me elogiam, me fazem carinho. Eu amo eles. Amo demais. Eu espero que eles tenham se divertido na minha festa de aniversário. Que eu possa dar para eles um pouco da alegria que eles me dão.
- Tenho certeza que eles se divertiram. Ótimo. Podemos fazer um pingue-pongue, para terminar a entrevista?
- Pingue-pongue?
- É. Eu faço uma pergunta direta e a senhora responde de forma direta, sem elaborar muito. É uma forma de as pessoas conhecerem a senhora a fundo, mas de forma rápida.
- Tudo bem... se eu souber as respostas...
- Muito bem. Primeira: Seu nome?
- São Paulo. Era São Paulo de Piratininga, mas ficava muito longo e as pessoas esqueceram o sobrenome. Hoje, é só São Paulo.
- Apelido?
- Sampa.
- Idade?
- Essa, você sabe...
- Cor?
- Não gosto de cinza, dá para acreditar? Gosto de verde. Queria ter mais vestidos desta cor (ouviu, prefeita?)
- Número preferido?
- Hum, boa pergunta. Neste momento, é mais de 15 milhões. Se você quiser, eu dou uma pesquisada e te falou depois. Mas é entre 15 milhões e 20 milhões, por aí.
- Uma música?
- Várias. Não tenho uma favorita. Obviamente, a do Caetano (Sampa) é a que mais cantam para mim. Mas eu tenho saudade do Adoniran também. E gosto do som dos anos 80, do Latitude 2001... gosto do chorinho... os assobios dos office-boys na Paulista, os walkmans no 856-R (uma linha de ônibus)... gosto até daquela batucada da Barra Funda, da Camisa Verde-e-Branco, da Rosas de Ouro... Difícil dizer. Até mesmo a música das buzinas, mas sem exageros, é legal.
- Um poema?
- Algo do Mario de Andrade.
- Um filme?
- Fizeram alguns comigo. Mas nada que se compara com os que fizeram com minhas irmãs. Ainda vai surgir meu filme, o meu grande filme. Ouviram, cineastas?
- Um momento feliz do passado?
- Ah, tantos... Acho que o primeiro beijo, o daqueles índios, à beira do Tamanduateí. Todos os beijos de namorados até hoje. Os beijos na Paulista, os beijos no ônibus, nos motéis, nos shoppings.
- Uma lembrança ruim?
- Os 111 mortos no Carandiru.
- Uma situação embaraçosa?
- Todas as em que esses prefeitos me colocaram. Prometeram mais Metrô há muito tempo - hoje, estão construindo a linha da Rebouças, finalmente - e depois demoram anos... e eu fico tão sem graça... e aquele absurdo da Marginal Pinheiros, aquele prédio da Eletropaulo inacabado? Como é que eu fico com aquela espinha cinzenta imensa na minha cara?
- Uma pessoa?
- Você. E todos os que moram em mim.
- (Risos) Obrigado! Um desejo?
- Que as pessoas me entendam melhor.
- Prá terminar de vez: Como a senhora se vê no futuro?
- Humm, difícil responder curto essa...
- Não, pode responder o que quiser... pode se estender, se quiser.
- Tá bom. Eu me vejo uma cidade linda. Todos esses problemas são passageiros. É claro, as cicatrizes vão ficar. Mas olha minhas irmãs: Londres tinha aquele rio horrível, sujo como o Tietê, e hoje não tem mais. Nova York era uma das cidades mais violentas do mundo, hoje não é. Tóquio é muito maior que eu, mas tem um imenso metrô, uma ótima rede de transportes e, mesmo tão inchada, consegue viver bem. Não sei se vou ficar mais magra - provavelmente não. Mas posso, com certeza, ficar mais bonita. Infelizmente, eu, sozinha, posso fazer pouco para que isso se transforme em realidade. Espero que as pessoas entendam isso. E não botem a culpa em mim.
Nada como ser São Paulo mesmo sem estar em São Paulo. Dizem que o tempo dissolve as más lembranças... Pobre paulista, pobre São Paulo. A enxurrada pode levar os corpos sem bens e sem vida, mas nunca afogará a sua esperança. Do sol nas areias de Miami Beach ou da fria garoa em Charing Cross Road, ainda sentes o silencio da Rua Direita no domingo à noite... Quem diria... Best regards!
Vc foi criativo e inteligente... aliás criatividade combina com inteligência!
Parabéns pelo texto despretencioso e gostoso de ler!
Parabéns a São Paulo pelos 450 anos... Já estava na hora de ser entrevistada!
Arcano9, só te achei agora, li sua matéria sobre o Jubileu da Rainha da Inglaterra (2002). Fiquei surpreso com o comentário de que Brian Wilson foi "deprimente"... Att. Marco