Acabei encarando a desmedida;
Medi minha coragem e meu cansaço
E não lhes dei ouvidos, dei partida.
Disse-me: "Vai, ou não terás espaço
Para um só verso, vai!". E foi assim
Que eu "fui", como amparado pelo braço
De alguém - ou algo - tão a igual a mim
Que talvez fosse eu mesmo.
Bruno Tolentino, "Travessia", in: O Mundo Como Idéia
Quando William Faulkner morreu, em 1962, a sua situação na literatura mundial era igual a de sua personagem Lena Grove: sentado junto ao caminho do condado mítico de Yoknapatawpha, contemplando a sua obra forjada na astúcia, na solidão e no exílio do Sul americano, ele pensou: "Venho do Mississipi. Boa caminhada. Toda a estrada a pé, desde o Mississipi". Ainda não fez sessenta e quatro anos que ando e já estou mais longe de casa do que nunca. Estou mais longe de Oxford, minha cidade natal, do que já estive alguma vez desde os meus doze anos. E foi assim que Faulkner se foi, talvez sem saber que, quarenta e dois anos após a sua partida definitiva do caminho sulista, ele seria o exemplo perfeito do que um verdadeiro escritor é capaz quando assume o risco de fazer a aposta de Pascal.
Mas qual é a relação entre um escritor americano e um dos maiores pensadores religiosos de todos os tempos? Faulkner é sempre retratado como um escritor do desespero que, mesmo com seus tons dourados, tipicamente sulistas, seria uma espécie de irmão gêmeo dos existencialistas Sartre e Camus; já Blaise Pascal é o maior apologista do Cristianismo na modernidade, um dos poucos opositores às loucuras solipsistas de Montaigne e Descartes e o autor daquele livro que provoca um terremoto na alma de cada leitor que o lê - Pensamentos. Dois sujeitos díspares, se forem vistos apenas na superfície. Nada mais errado.
Faulkner e Pascal têm muito em comum porque ambos praticaram o mesmo Cristianismo agonizante que moldaria também os espíritos de sujeitos como Kierkegaard, W.H.Auden, Miguel de Unamuno e Graham Greene. Essa expressão "Cristianismo agonizante" não é um mero pleonasmo. Muitas vezes, a repetição é necessária, principalmente numa época em que o anti-cristianismo se tornou uma instituição, seja no aspecto cultural ou no político. Obviamente, a agonia é uma das características centrais da religião cristã e o fato de que, junto com a incerteza, ela provoca uma perturbação na alma humana que será resolvida somente com uma verdadeira metanóia, cria um mal-estar na civilização ocidental que ultrapassa qualquer conceito freudiano e atinge a essência de uma outra vida, diferente da econômica, psíquica ou sexual - uma vida secreta.
A aposta de Pascal leva em conta justamente o problema de como se atinge essa vida secreta. O raciocínio é muito simples: existem pessoas que não se importam com a imortalidade da alma e sequer se importam se existe realmente um outro reino além deste mundo. Para Pascal, elas não podem ser chamadas de apóstatas, o que seria um título demasiadamente pomposo para uma óbvia imbecilidade. Contudo, ele também era um apologista, mas um apologista que precisava provar que o Cristianismo é a verdade através da lógica e da razão. Assim temos a necessidade da aposta: se o sujeito permanecer na sua vida medíocre, sem se preocupar com os assuntos divinos, ele não perderá nada. Continuará com sua medíocre existência, com sua acomodada boçalidade. Mas, se ele se dedicar aos assuntos divinos e comprovar, com suas experiências, que eles existem e levam à verdade do Cristianismo, seu ganho foi nada mais, nada menos do que a vida eterna. Logo, a possibilidade de ganhar na aposta é tanto de 50% para que sua vida não mude e continue na mesma toada de mediocridade, como de 50% para que a verdadeira vida do Espírito ilumine a existência humana até o fim dos tempos. Realmente, uma aposta irrecusável pois, como diria Bob Dylan, "when you´ve got nothing, you´ve got nothing to lose".
William Faulkner foi o exemplo encarnado do escritor que aceita a aposta de Pascal até as últimas conseqüências - e que, no final, saiu vitorioso. Seu Cristianismo agonizante era a do "salve, Cristo, esses pobres filhos-da-puta", a de homens e mulheres que, por mais que sofressem, sempre suportariam o fardo dos seus destinos porque sabiam que a condição humana é de agüentar o máximo a cruz que lhes é imposta. Essa é a única escolha possível para um personagem de Faulkner: abraçar a incerteza e tentar ser um pardal que acompanha um falcão, uma vez que estes têm mais chance de escaparem ilesos das pedradas da vida e dos trovões de Deus. Obviamente, Faulkner fez a mesma coisa na sua vida e sua biografia deveria ser um modelo para os escritores brasileiros, adoradores do patrocínio estatal e ansiosos por um sucesso postiço. Faulkner sabia que, para ser um escritor, não precisa ser rico. A literatura não é uma profissão. É um exorcismo, é uma luta interior em que o artista, depois de ter lutado com seus segredos mais demoníacos, transcende tudo isso com uma obra-de-arte. O trabalho com as palavras, na busca pela linguagem secreta do Sagrado, é a mais implacável das vidas secretas. De certa forma, o escritor é uma espécie de imitatio Christi: only drowning men could see him, diria um certo Leonard Cohen. Ele nunca deve duvidar das suas capacidades para escrever; só precisa de um emprego que dê teto e comida pois, como disse o próprio Faulkner em uma entrevista memorável:
"O escritor não precisa de liberdade econômica. Tudo de que precisa é de lápis e papel. Eu nunca soube que algo bom em literatura tivesse se originado da aceitação de uma oferta gratuita de dinheiro. O bom escritor nunca pede auxílio a uma instituição cultural. Está ocupado demais escrevendo alguma coisa. Se não é um escritor de primeira classe, ilude-se dizendo que não tem tempo ou liberdade econômica. Pode surgir arte boa de assaltantes, contrabandistas ou ladrões de cavalos. As pessoas na verdade têm medo de descobrir que podem suportar muita adversidade e pobreza. Têm medo de descobrir que são mais resistentes do que pensam. Nada pode destruir o bom escritor. A única coisa que pode alterar o bom escritor é a morte. Os bons não têm tempo para pensar no sucesso ou em ganhar dinheiro. O sucesso é feminino e como uma mulher; se você se curva diante dela, ela passa por cima de você. Então o jeito de tratá-la é dar-lhe as costas da mão. Aí, talvez, ela venha a rastejar".
E ele cumpriu cada palavra que disse. Faulkner trabalhou como carteiro, vendedor de carros, lavador de pratos e segurança enquanto escrevia os romances que o transformariam em um dos maiores nomes do modernismo, junto com Joyce, Pound e Eliot - The Sound and the Fury (1929), As I Lay Dying (1930), Light in August (1932), Absalom, Absalom! (1936) e Wild Palms (1938). Nestas cinco obras-primas, o Cristianismo agonizante aparece num virtuosismo técnico e num questionamento filosófico que não deixa pedra sobre pedra. Faulkner narra como o niilismo corrói toda uma família (The Sound and the Fury e Absalom, Absalom! - dois dos livros mais impenetráveis da literatura mundial), como a esperança vive lado a lado com o desespero (Light in August, um romance que este humilde escriba daria as duas mãos para escrevê-lo), como a família, muitas vezes, pode ser seu maior obstáculo (As I Lay Dying, impecável em sua técnica de monólogos interiores) e como o verdadeiro amor entre um homem e uma mulher só pode existir se ambos se entregarem à incerteza da existência (Wild Palms, a grande paródia que Faulkner fez do seu amigo, Ernest Hemingway).
Esses livros foram a razão principal para Faulkner vencer o surpreendente Prêmio Nobel em 1949, mas, mesmo assim, ele não parou em seu trabalho. O universo mítico do condado de Yokapatawpha se expandia em trabalhos singulares como Requiem for a Nun, The Hamlet, The Town, The Mansion, The Reivers e tinha suas idiossincracias como a mal-sucedida alegoria cristã A Fable, que transpunha a paixão de Cristo para um motim militar na Primeira Guerra Mundial. É bem provável que a velhice e o sucesso do Nobel arrefeceram um pouco a fúria criativa de Faulkner. Seus romances da maturidade não mostram mais a tendência de querer provar para si mesmo do que era capaz com sua técnica e seu estilo. Ainda assim, mesmo o pior de Faulkner é mil vezes melhor do que qualquer linha escrita por Paulo Coelho.
No ano de sua morte, William Faulkner estava relativamente esquecido. Somente agora, em um tempo em que as pessoas procuram escapar da incerteza como o diabo foge da cruz, que sua literatura difícil e exigente começa novamente a incomodar as pessoas com aquele aguilhão que apenas a grande arte faz. E é também nesse momento que a aposta de Pascal se torna mais importante como nunca, pelo simples motivo de que as pessoas esqueceram como fazer a escolha certa e suportar suas conseqüências doloridas. Elas desejam o sucesso como fim, a felicidade como meio, mas esqueceram que não importa a meta, o que vale é a travessia. A obra de Faulkner e o seu exemplo como escritor para as gerações futuras, sejam brasileiras ou não, e a beleza da vida secreta que motiva a aposta de Pascal deveriam ser ensino obrigatório para nossos jovens. Pois, sem dúvida nenhuma, William Faulkner sabia que, sentado em seu caminho, contemplando o trabalho de sua vida, nunca teria dado uma caminhada tão longa e tão boa se não tivesse arriscado uma aposta que somente um verdadeiro escritor teria a coragem de fazer.
Caro Martin,
foi um prazer ler seu belo artigo. É um aviso àqueles que pensam que ser artista é colocar sobre a cabeça um enfeite/rótulo - simples álibe para uma busca de status. parabéns!
jardel
Martim, que belo artigo sobre a obra de William Faulkner, realmente um exemplo prático da "Aposta de Pascal". Alguém já disse que é o Artista que provoca mudanças, enquanto o cientista apenas as explica. Parabéns!