A língua portuguesa - assim como um bambu verde e comprido - entorta quando envergada com força, mas é quase inquebrável: voltando, quando a alavanca cede, à sua posição original. O inglês, porém, se aproxima mais de uma vara pequena e seca: ela se quebra com um curto movimento, mas é preciso ser forte para rompê-la. O português, por isso, fica mais agradável em movimento, como o balanço que acompanha o vento - seguindo seu fluxo, que é constante, e seu sentido, que surpreende. O inglês, por sua vez, tem uma dinâmica diferente: ele se mantém mais duro e firme, numa posição quase sempre imóvel, mas com pequenas variações em seus detalhes - é na criação e na combinação de palavras em que reside o movimento da língua. A flexibilidade do inglês, assim, se limita à composição das palavras; enquanto o português - com palavras praticamente intocáveis - impõe seu ritmo na composição das frases.
Esse aspecto ao mesmo tempo rígido e maleável da língua portuguesa lhe permitiu atravessar séculos, preservando uma reconhecível identidade - para não dizermos que o português, relativamente - se comparado ao inglês, por exemplo -, quase não variou. Escrevo, é claro, sobre um português, digamos assim, razoavelmente educado, que não é nem o utilizado em academias isoladas nem em ilhas desertas. (A língua, nesses lugares, se distorce artificialmente, afetada por particularidades do ambiente.) Trato aqui da língua como é praticada por pessoas comuns, que se revela com nitidez, no Brasil, na prosa de cronistas competentes.
É o caso de Franklin de Oliveira, por exemplo: um ensaísta esquecido, que com impressionante naturalidade discorria, num mesmo texto, sobre os mais diferentes assuntos - e fazia com que todos se encaixassem, ligados por um estilo casual e fluente. A próxima seqüência de palavras de Franklin é sempre imprevisível, porque a organização das suas frases, de um modo geral, seguem um esquema aberto - ou seja, esquema nenhum. Quer dizer: Franklin escrevia como se falasse, buscando palavras e assuntos de modo aleatório, com uma prosa aparentemente fácil. Que, na verdade, é resultado da intimidade do escritor com a língua que trabalha: e, como toda intimidade, é conseqüência de uma longa relação, que - se proveitosa para ambos os lados - evolui com o tempo. Foi assim: Franklin, durante décadas, cultivou o hábito da leitura; e, ao mesmo tempo, aplicou em seus ensaios o que aprendeu com os dos outros. E desenvolveu um estilo que é - como um estilo tem que ser - muito natural e muito pessoal. E que reflete, no fim das contas, a mais atrevida característica da língua portuguesa: sua capacidade de rebolar de repente, sem que o texto perca o sentido ou a forma.
Eu não disse que o português é mais bonito do que o inglês, e não acho: o que disse é que o ponto onde as línguas vibram é outro. O português permite maior elasticidade na frase - enquanto o inglês, por sua vez, relaxa o vocábulo. Em português, transformamos uma frase em rocambole, invertendo passagens e brincando com vírgulas - e, às vezes, fica bacana. Mas em inglês esse método normalmente não funciona. Um artigo de Louis Menand, por exemplo, que considero imperdível e impecável, também - como Franklin - mantém uma fluência perfeita. Mas, ao escrever em outra língua, ele acerta em outro aspecto: ao contrário de Franklin, é evidente, para o leitor, que ele releu o texto e reescreveu passagens, alcançando um estilo que - antes dele - já existia. O estilo ideal da língua inglesa. É mais ou menos isso que quero dizer: em português, essa forma - ou fôrma - não existe; e em inglês ela é invisível mas precisa, puxando um texto para ajustar ao seu padrão.
Isso não significa, veja bem, que Franklin não revia seus ensaios, ou que Menand sue desesperadamente para escrever. É o produto que nos interessa - e a impressão que ele passa. E a habilidade de dois ótimos escritores, um em cada língua, para manusearem seus recursos: Franklin escreveu como um orador improvisado, e Menand, por sua vez, como um cientista preparado. Mas ambos preocupados com a harmonia dos seus estilos e com a lógica das suas estruturas. E, portanto, com o leitor - que, em especial o brasileiro, está sofrendo calado, ultimamente, com tanta feiúra impressa.
Os erros são diversos, mas repetidos. Um deles, por exemplo, é interpretar a avaliação que fiz da língua portuguesa como o seguinte: como se eu estivesse dizendo que a "lógica da língua portuguesa é diferente" - e não algo mais sutil, que se refere exclusivamente ao estilo. Muita gente acredita nisso: e acha até que deveríamos todos escrever de olhos fechados, sobre um assunto qualquer, e que apenas essa espontaneidade é linda. Isso, para citar nomes, é o que o João Ubaldo faz - e acaba combinando a inexistência da forma com o vazio do conteúdo. Do outro lado, estão especialistas metódicos, que pensam que seus textos estão carregados de conteúdo indispensável - e que, portanto, a função didática do seu artigo é suficiente. É o caso, desta vez, do Delfim Neto, que se desgasta agrupando uma imensidão de dados para justificar uma opinião previsível - expressa na mais cansativa lentidão, incorrigível mesmo pelos revisores que ajeitam suas barbaridades gramaticais.
O resultado, então, é que nossos cronistas e articulistas - desconhecendo propriedades básicas da língua em que escrevem - escrevem mal. Uns procuram um estilo mecânico, afastando o gingado do texto, perdendo sua graça e sua velocidade. Outros pensam que, para encontrar esse requebrado, devem escrever como as idéias lhes vêm à cabeça - e demonstram, no próprio texto, que não vem idéia nenhuma. A impressão é de que a situação do escritor com o idioma está irresolvida.
O que falta, nesses casos, é uma relação de amizade - ou, se quiser, de namoro - com a língua. Como numa proximidade antiga e satisfeita, quando se conhece nos detalhes e em profundidade sua parceira - sem porém se entediar dela. Ao contrário: aprendendo, a cada dia, novidades, afinando e engrandecendo a relação - e concluindo num casamento feliz. É preciso que certos escritores - em vez de tratar o português com desprezo e maldade - aprendam a compreendê-lo e admirá-lo. O que parece, no entanto, na maioria dos casos, é que eles vivem em constante conflito com a língua. E acabam brigando em público. Fica, para o leitor, uma situação desagradável. Nós não gostamos de reality show.
Quer dizer: não desse tipo, pelo menos - que, de tão desinteressante, acaba concorrendo com certos programas de televisão. Mas reconheço que seria divertido reunir, numa mesma casa, Marcel Proust, Pete Sampras, David Rockfeler, Harold Ross, Anastácio Agulha, Blaise Pascal, Garrincha, Micheal Porter, Rasputin e Jonh Hunter. As conversas seriam engraçadas, garanto. E Proust, editado por Harold Ross, transformaria os melhores momentos em literatura. Praticamente o que Franklin fazia, só que em francês. E aí - voltando ao assunto inicial - o estilo é outro.
Enquanto lia o artigo, me lembrei de uns trabalhos que andei lendo, nos quais há uma mistura terrivelmente indigesta de estilos, resultado numa compilação torturante e mal resolvida de coisas que o cara leu. Esses 'escritores', pra mim, são até piores do que os sem estilo algum. Aliás, a língua inglesa sabiamente diz: A little knowledge is a terrible thing.
Fantástico artigo. Quem sabe não serve de acelerador pro metalismo intelectual de alguns de nossos escritores, que torturam nossa cabeça com textos mal escritos e flagelam nossa língua.