Imaginação capturada: uma caloura na Berlinale | Daniela Sandler | Digestivo Cultural

busca | avançada
84294 visitas/dia
2,5 milhões/mês
Mais Recentes
>>> Cia Truks comemora 35 anos com Serei Sereia?, peça inédita sobre inclusão e acessibilidade
>>> Lançamento do livro Escorreguei, mas não cai! Aprendi, traz 31 cases de comunicação intergeracional
>>> “A Descoberta de Orfeu” viabiliza roteiro para filme sobre Breno Mello
>>> Exposição Negra Arte Sacra celebra 75 Anos de resistência e cultura no Axé Ilê Obá
>>> Com Patricya Travassos e Eduardo Moscovis, “DUETOS, A Comédia de Peter Quilter” volta ao RJ
* clique para encaminhar
Mais Recentes
>>> A vida, a morte e a burocracia
>>> O nome da Roza
>>> Dinamite Pura, vinil de Bernardo Pellegrini
>>> Do lumpemproletariado ao jet set almofadinha...
>>> A Espada da Justiça, de Kleiton Ferreira
>>> Left Lovers, de Pedro Castilho: poesia-melancolia
>>> Por que não perguntei antes ao CatPt?
>>> Marcelo Mirisola e o açougue virtual do Tinder
>>> A pulsão Oblómov
>>> O Big Brother e a legião de Trumans
Colunistas
Últimos Posts
>>> O MCP da Anthropic
>>> Lygia Maria sobre a liberdade de expressão (2025)
>>> Brasil atualmente é espécie de experimento social
>>> Filha de Elon Musk vem a público (2025)
>>> Pedro Doria sobre a pena da cabelereira
>>> William Waack sobre o recuo do STF
>>> O concerto para dois pianos de Poulenc
>>> Professor HOC sobre o cessar-fogo (2025)
>>> Suicide Blonde (1997)
>>> Love In An Elevator (1997)
Últimos Posts
>>> O Drama
>>> Encontro em Ipanema (e outras histórias)
>>> Jurado número 2, quando a incerteza é a lei
>>> Nosferatu, a sombra que não esconde mais
>>> Teatro: Jacó Timbau no Redemunho da Terra
>>> Teatro: O Pequeno Senhor do Tempo, em Campinas
>>> PoloAC lança campanha da Visibilidade Trans
>>> O Poeta do Cordel: comédia chega a Campinas
>>> Estágios da Solidão estreia em Campinas
>>> Transforme histórias em experiências lucrativas
Blogueiros
Mais Recentes
>>> Do outro lado, por Mary del Priore
>>> 13 musas da literatura
>>> Mais Kaizen
>>> Anchieta Rocha
>>> O nome da Roza
>>> Máfia do Dendê
>>> Internet e Classe C
>>> Gramado e a ausência de favoritismo
>>> Mamãe cata-piolho
>>> A arte da ficção de David Lodge
Mais Recentes
>>> Todos Os Homens Do Xá de Kinzer pela Bertrand Do Brasil (2004)
>>> Matemática Financeira Simplificada Para Concursos de Sérgio Carvalho, Weber Campos pela Elsevier (2007)
>>> As 3 Escolhas Para O Sucesso de Stephen R. Covey pela Vida Melhor (2013)
>>> Fogo Persa de Tom Holland, Luiz Antonio Aguiar pela Record (2008)
>>> As Associacoes Sem Fins Economicos de Rodrigo Xavier Leonardo pela Revista Dos Tribunais (2001)
>>> O Processo Civilizador 2 Formação do Estado e Civilização de Norbert Elias pela Zahar (1993)
>>> Maria Melado Sobremesas Geladas e Quentes de Nenzinha Machado Salles pela Record (1999)
>>> O Processo Civilizador de Norbert Elias pela Jorge Zahar (2011)
>>> Nelly And The Quest For Captain Peabody de Roland Chambers pela Oxford Children's Books (2015)
>>> Simbolismo Do Terceiro Grau - Mestre de Rizzardo da Camino pela Madras (2017)
>>> Um, Nenhum e Cem Mil - Cosacnaify de Luigi Pirandello pela Cosacnaify (2010)
>>> Alquimia Emocional de Tara Bennett-goleman pela Objetiva (2001)
>>> O Poder Transformador Do Esg - Como Alinhar Lucro E Proposito de Paula Harraca pela Planeta Estrategia (2022)
>>> O Protegido - Por Que O Pais Ignora As Terras De Fhc de Alceu Luis Castilho pela Autonomia Literária (2019)
>>> Level 6: I Know Why The Caged Bird Sings (pearson English Graded Readers) de Maya Angelou pela Pearson Elt (2008)
>>> Como Reconhecer a Arte Mesopotâmica de Sabatino Moscati pela Martins Fontes (1985)
>>> O Deus Da Idade Média de Jacques Le Goff pela Civilização Brasileira (2020)
>>> Flecha No Tempo de Luiz Antonio Simas; Luiz Rufino pela Mórula (2019)
>>> A Inquisiçao De Goa de Charles Amiel; Anne Lima pela Phoebus (2014)
>>> Del Gato Félix Al Gato Fritz - Historia de los Comics de Javier Coma pela Gustavo Gili (1979)
>>> O Outono Da Idade Média de Johan Huizinga pela Carego (2021)
>>> Forja de Impérios de Michael Knox Beran pela Record (2013)
>>> Os Antropologos E A Religiao de André Mary pela Ideias & Letras (2015)
>>> Um Dia Minha Alma Se Abriu Por Inteiro de Iyanla Vanzant pela Sextante (2000)
>>> A Volta Ao Mundo Em 80 Dias de Júlio Verne pela Larousse Jovem (2006)
COLUNAS

Quarta-feira, 11/2/2004
Imaginação capturada: uma caloura na Berlinale
Daniela Sandler
+ de 5300 Acessos

Cenário: uma cidade alemã, domingo de manhã, a avenida quase deserta. Chove granizo, o vento cospe a chuva no rosto dos passantes, uma senhora quase escorrega. O céu escuro pesa sobre a catedral em ruína. A cena é de um silêncio sinistro, cortado apenas pelo ruído de fundo das pedrinhas de granizo batendo na calçada. Os transeuntes apressados fitam o chão, soturnos, sonolentos. Entram no prédio ainda deserto e meio escuro, onde mais de meia centena de pessoas já se refugia. Carrancudas, esparramam-se pelo chão, provavelmente há horas, sobre colchonetes, cobertores, travesseiros. As pessoas estão organizadas em fileiras, e os recém-chegados não escondem a irritação ao ter de tomar lugar no fim. Os poucos que conversam o fazem em voz baixa.

Fitando a cena, eu me pergunto: O que fazem essas pessoas? Qual a razão de sua espera? Suponho que poderia ser uma fila para a ração de comida, parte da vida no pós-guerra. Ou poderiam ser desabrigados – assim como a catedral, a guerra arruinara muitas casas. Dou tratos à bola sem resolver o mistério, até ser despertada de meu devaneio pela mulher atrás de mim, cutucando sem querer com seu guarda-chuva. E então, como num passe de mágica, os guichês abrem, iluminam-se, e a nossa fila começa a andar. Tenho de andar também, há vinte pessoas na minha frente e umas trinta atrás de mim. Essa cena não estava na tela, mas esteve, sim, no Festival de Berlim. Todos os dias a cena se repete nos pontos de venda de ingressos. Tem algo mesmo de guerra essa luta por um lugar nas sessões desejadas, e confesso sentir uma excitação de vitória quando, de posse de meus ingressos, conquisto também o espaço precioso de um assento de cinema.

Não é de surpreender esse auê. O Festival de Berlim, ou Berlinale, está entre os três maiores festivais competitivos de cinema do mundo, junto a Cannes e Veneza. E é o maior em termos de participação do público. Por um lado isso é uma beleza, pois possibilita que gente anônima como eu e você possa assistir às estréias badaladas e roçar ombros com o diretor ou a atriz principal. Por outro lado, essa abertura traduzida em imensa popularidade significa também imensa concorrência por entradas.

É preciso compreender as regras do sistema de vendas, programar com antecedência os dias certos para a compra de cada ingresso desejado, acampar nas filas das bilheterias, contabilizar o tempo de ir e voltar de cada cinema que faz parte do festival, programar a chegada com antecedência para garantir um bom lugar, desmarcar compromissos posteriores porque as sessões muitas vezes atrasam (embora espectadores atrasados não entrem), e estudar a programação cuidadosamente para coordenar os horários e locais dos filmes que se quer ver. No meio de tudo isso, é necessário achar tempo para ler as sinopses dos cerca de 400 filmes divididos entre mostras paralelas e competição principal, na esperança de conseguir escolher os filmes com alguma dose de informação e gosto pessoal...

Mais que a soma de todos os filmes

Acompanhar a Berlinale toma o corpo e o espírito durante os dez dias do festival, mesmo entre uma sessão e outra. Para quem, como eu, não se incomoda de respirar cinema, é uma maravilha – que pode virar fácil uma obsessão, como no caso das pessoas que se postam às oito da manhã diante da bilheteria que só abre às dez. Vale a pena todo esse tempo e esforço? Afinal, um filme é só um filme. Vários dos filmes, certamente todos os mais concorridos, acabam entrando em cartaz mais cedo ou mais tarde – alguns, até mesmo durante o próprio festival. Por que não esperar para vê-los com calma, no cinema mais perto de casa, sem o clima de histeria coletiva da multidão e com ingresso mais barato? Ou mesmo em casa, em DVD, quando aquele alemão altão e pescoçudo certamente não vai sentar na cadeira da frente?

Porque, simplesmente, não é a mesma coisa. Eu mesma, por exemplo, desde que me entendo por cinéfila acompanho o Festival de Berlim nas notícias e resenhas de jornal. Depois de todos esses anos o festival soa pra mim quase mítico, e é um sonho acontecer de eu estar em Berlim por um ano e poder participar. Tomar parte na Berlinale é muito mais do que a simples soma de todos os filmes assistidos individualmente. A participação começa na aventura das filas, claro; e se estende ao clima elétrico dos saguões de espera e tapetes vermelhos. Dentro das salas lotadas, em meio ao burburinho de centenas de outros fãs igualmente imersos no mundo do festival – a cabeça cheia de títulos, imagens, expectativas, boatos –, a sensação de assistir ao próximo sucesso mundial em primeira mão, a emoção diante de um filme particularmente belo, e até mesmo a decepção com uma fita ruim são exaltadas, devolvendo a magia à experiência de ver um filme.

Além disso, a mostra é um evento da cidade, que irrompe para além das salas de cinema e toma Berlim física e simbolicamente. A constelação de cinemas, situados principalmente ao redor de dois focos urbanos principais, esparrama o público do festival pelas calçadas, ruas laterais, estações de metrô, restaurantes e barraquinhas de salsicha. Jornalistas e outros profissionais credenciados passeiam pela cidade ainda com o crachá oficial esquecido no pescoço; espectadores carregam a sacolinha do festival a tiracolo, ou empunham o catálogo diante dos olhos. Num café, na mesa ao meu lado, um homem fala ao celular, em inglês, sobre o filme que irá ver à tarde. Em cada canto da cidade há algo do festival. Pôsteres e cartazes nas ruas; jornais e revistas que estampam fotos das estrelas no tapete vermelho; cobertura ao vivo pela televisão. O festival toma a cidade, e a cidade faz do festival ponto de honra e de autopromoção, é claro, que ninguém é besta.

Cabe a cada espectador também fazer da Berlinale o seu próprio uso. Muitos madrugam, estapeiam-se e pagam mais caro para ver o filme de estúdio hollywoodiano que uma semana depois vai entrar em cartaz em cinemas pela cidade inteira – por exemplo, Cold Mountain, de Anthony Minghella, superprodução estelar com Nicole Kidman e Jude Law. Depois, saem decepcionados, dizendo que o filme foi mais ou menos. Talvez o gosto seja esse mesmo – desdenhar a superprodução? Para outros, o encanto está em assistir ao filme com a presença da equipe – atores, diretor, roteirista, etc. Não há muita interação com a platéia, mas dá para ver de perto e em carne e osso os rostos que há pouco iluminavam a tela. E, no caso de um filme bom, é bacana aplaudir os realizadores. Dependendo da sessão, o diretor responde a perguntas dos espectadores, o que, se nem sempre explica o filme, em geral suscita outras questões interessantes. E, finalmente, o festival também oferece a chance de ver filmes independentes, às vezes experimentais, que dificilmente serão exibidos fora de mostras especiais.

A primeira vez na Berlinale a gente nunca esquece

Chega a hora de ir para o meu primeiro filme: a estréia de um dos títulos da mostra competitiva, no cinema principal, o Palácio da Berlinale – um edifício projetado pelo arquiteto-estrela italiano Renzo Piano, que contém teatro, cassino e restaurante. A face principal do prédio anguloso é uma fachada de vidro, que separa o saguão de pé-direito quíntuplo da praça côncava. No meio da praça estende-se o tapete vermelho, vermelhão-fosforescente, cercado por barreiras baixas. A montagem é festiva: um globo metálico, de discoteca, espalha reflexos prateados pela praça e pelas ruas ao redor. Um telão mostra entrevistas e cenas de festivais passados, e pela fachada enorme do Palácio jorra a luz ofuscante dos holofotes do saguão.

A platéia começa a chegar cedo, quase uma hora antes, e de novo se espreme em fila. Quando o acesso é aberto, as pessoas saem correndo pelas escadas, sem pudor, como rebanho em disparada. Eu tento manter a dignidade enquanto caminho para a minha seção, no topo do auditório, que tem cinco andares. Dentro do auditório gigante, lotado, há equipes de filmagem, e a iluminação sobre o palco é possante. A apresentadora anuncia o filme e também parte da equipe, que desfila sob aplausos antes do início do filme.

Em geral eu sou cética diante dessas encenações e comoções coletivas, mas desta vez eu me emociono, com a sensação de fazer parte de algo especial. Não adianta repetir a mim mesma que um filme é apenas um filme, que eu poderia assisti-lo aqui como ali, em Berlim ou em São Paulo, no Belas-Artes ou no vídeo, e não faria diferença. Não, nada disso me convence, nem mesmo o meu desconforto, encarapitada no poleiro do auditório e esticando o pescoço para enxergar a tela. Pois esse clima inebriante também me envolveu, e restituiu o encantamento quase ingênuo diante dos feixes de luz faiscando na tela – a imaginação capturada.

Sim, sinto-me um pouco besta de admitir... foi preciso mesmo tudo isso para fazer minha experiência especial? Um pensamento então me conforta: na época áurea de Hollywood, ir ao cinema também era um ritual e a encenação festiva fazia parte da experiência. Sinto-me reaproximada um pouco dessa história. Hoje em dia, não há mais como fazer do cinema de domingo um acontecimento: o público é tão grande, o número de filmes também, ninguém tem mesmo mais tempo, e nossa cultura é muito menos formal. Mas o rito sobrevive nessas ilhas de fantasia que são os festivais – não apenas para quem, como eu neste ano, pode participar. Também para você, aí, lendo este texto, ou acompanhando o festival pela tevê ou pelo jornal – como eu sempre fazia –, o festival cumpre um pouco dessa função de encantamento, nos fazendo esperar ansiosamente pela estréia deste ou daquele filme, projetando títulos e artistas como objetos do nosso fascínio, e nos fazendo esquecer, pelo menos por um momento, que um filme é apenas um filme.


Daniela Sandler
Berlim, 11/2/2004

Quem leu este, também leu esse(s):
01. Informação, Redes Sociais e a Revolução de Noah Mera
02. Como você aprende? de Débora Carvalho
03. Desperte seu lado Henry Ford de Débora Carvalho
04. Anjos Caídos, de Tracy Chevalier de Ricardo de Mattos
05. Por onde anda a MPB atualmente? de Maurício Dias


Mais Daniela Sandler
Mais Acessadas de Daniela Sandler em 2004
01. Olá, Lênin! - 10/3/2004
02. Brasil em alemão - 7/7/2004
03. Muros em Berlim, quinze anos depois - 24/11/2004
04. Dia D, lembrança e esquecimento - 9/6/2004
05. Fritas acompanham? - 18/8/2004


* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site



Digestivo Cultural
Histórico
Quem faz

Conteúdo
Quer publicar no site?
Quer sugerir uma pauta?

Comercial
Quer anunciar no site?
Quer vender pelo site?

Newsletter | Disparo
* Twitter e Facebook
LIVROS




Livro Administração Economia Aplicada Série Gestão Empresarial
Vários Autores
Fgv
(2010)



Juarez Barroso - o Poeta da Crônica-canção
Natercia Rocha
Substansia
(2018)



O Marketing na Era do Nexo - Novos Caminhos Num Mundo de Múltiplas Opções
Walter Longo / Zé Luiz Tavares
Best Seller
(2009)



Arquitetos Brasileiros
Vários Autores
Pini
(1987)



Seguindo os Passos de Jesus
Altamirando Carneiro
Camille Flammarion
(2005)



Paperweights
Pat Reilly
Apple Press
(1994)



Trilogia glimmerglass
Jenna Black
Universo Dos Livros
(2014)



Desventuras em Série - Volume 1 - Mau Começo
Lemony Snicket
Companhia das Letras
(2001)



Acima de qualquer suspeita
Tião Lucena
A União
(2015)
+ frete grátis



Fernão Capelo Gaiovota
Richard Bach
Círculo do Livro
(1970)





busca | avançada
84294 visitas/dia
2,5 milhões/mês