A discreta crise criativa das novelas brasileiras | Luis Eduardo Matta | Digestivo Cultural

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Terça-feira, 17/2/2004
A discreta crise criativa das novelas brasileiras
Luis Eduardo Matta
+ de 15900 Acessos
+ 7 Comentário(s)

Por mais que muita gente se recuse a admitir, a verdade é que não há como falar de cultura contemporânea no Brasil sem mencionar as telenovelas. Elas agem como um genuíno pólo de atração magnética, que leva o país inteiro a se reunir em torno da TV todas as noites há, pelo menos, trinta anos. É através delas, que uma parcela considerável do povo se reconhece, assimila informações e, acima de tudo, se desliga momentaneamente da realidade e mergulha no onírico e essencial universo da ficção, provando, com isso, que sem um pouco de fantasia no dia-a-dia, o ser-humano, mesmo o mais humilde, não sobrevive.

A popularização da telenovela é uma circunstância compreensível num país como o nosso. Se por um lado o Brasil já atingiu um nível razoável de desenvolvimento tecnológico que permite à maioria da população ter um televisor a cores em casa, por outro, ainda apresenta índices de leitura inexpressivos e uma oferta precária de salas de cinema, teatro e concerto, não restando aos cidadãos menos privilegiados outras alternativas de lazer, culturalmente falando. Mesmo num município como o Rio de Janeiro, são poucos os bairros que têm cinemas e raríssimos os que possuem teatros ou bibliotecas. A televisão acaba se apresentando como uma alternativa confortável, prática, atraente e, sobretudo, segura e barata aos olhos de quem passa o dia inteiro na correria do dia-a-dia, chega cansado em casa e não quer arriscar o pescoço saindo para alguma programação noturna que, fatalmente, lhe irá custar alguns cobres que farão falta na hora de fechar as contas no fim do mês.

O poder que a TV exerce sobre os brasileiros é imenso, o que só faz aumentar a sua responsabilidade na transmissão de valores e conceitos, na difusão do conhecimento e da informação e sobretudo no estabelecimento de uma postura de ética e respeito para com os espectadores, principalmente se considerarmos que ela invade sem cerimônia os lares de todo o país. Não que estas devam ser obrigações fundamentais de uma emissora comercial, que depende dos anunciantes atraídos por uma boa audiência, para pagar suas despesas e se manter em atividade. Por outro lado, ela não pode se deixar escravizar pelos caprichos dessa audiência, do contrário, acabará asfixiada por ela e refém das oscilações diárias do ibope, cujas primeiras vítimas costumam ser a criatividade, o bom-gosto e a coragem de inovar. A emissora, nesses casos, passa a ousar menos, torna-se repetitiva e, no afã desesperado de agradar ao público, toma o cuidado de não colocar no ar nada que possa, ainda que numa hipótese muito remota, contrariá-lo e, com isso, estimulá-lo a mudar de canal com um simples apertar de botão no controle remoto.

Essa é, infelizmente, uma realidade cada vez mais presente na televisão comercial brasileira como um todo e é particularmente evidente nas telenovelas, cuja fórmula, explorada à exaustão durante décadas, parece estar se aproximando do seu esgotamento. Digo isso com conhecimento de causa. Fui durante mais de uma década, um fiel espectador de novelas em mais de uma emissora, principalmente nos anos 80 e só diminuí o meu ritmo com o tempo porque as minhas noites foram sendo gradualmente ocupadas pela leitura e pela música. Mesmo assim, sempre que surge uma oportunidade, sento-me diante da telinha e confiro com atenção, pelo menos um pedaço de capítulo daquela novela que começou há não sei quantos meses e ainda não chegou nem à metade.

Numa primeira análise, o que se conclui é a existência de uma extrema semelhança na estrutura e no ritmo das tramas em exibição ou já exibidas. Todas apresentam uma fórmula esquemática que pode ser resumida mais ou menos assim: um casal apaixonado que, por conta de uma série de percalços, não consegue ficar junto para se amar em paz até os últimos capítulos; uma terceira personagem que se opõe fortemente à união deste casal (que tanto pode ser alguém tomado por uma paixão doentia por um dos protagonistas, como um pai ou mãe opressor que não concorda com a união); um galã disputado por metade do elenco feminino (geralmente, o protagonista); um vilão mau como um pica-pau; uma gravidez imprevista no meio da história (às vezes falsa, às vezes forjada para prender o homem amado); um núcleo de ricos (nada de classe média alta; têm de ser ricos mesmo; todos morando em mansões e coberturas faustosas de tirar o fôlego, com suas megaempresas instaladas nos mais opulentos arranha-céus envidraçados do Rio de Janeiro e de São Paulo e se locomovendo para cima e para baixo em helicópteros e iates) e um amontoado de coadjuvantes engraçadinhos, alegres, brejeiros e cheios de ginga, que simbolizam o "povo", tudo isso embalado pelos ritmos sonoros mais quentes da estação. Por conta do elevado orçamento envolvido na produção de cada novela, os capítulos acabam sendo esticados além do seu limite, provocando uma diluição do foco narrativo e obrigando o autor a introduzir uma infinidade de situações não programadas anteriormente, a fim de distrair o telespectador, enquanto a trama não chega ao seu fim. O resultado disso é, guardadas as devidas exceções (elas sempre existem, graças a Deus; vide A Próxima Vítima e, mais recentemente, O Clone), uma lamentável sucessão de folhetins muito parecidos uns com os outros, como se todos não fossem mais do que variações de uma única obra, que serviria como uma espécie de "grande mãe inspiradora".

O problema não é recente, mas torna-se a cada ano mais óbvio, porque a novela já explorou muitas das suas possibilidades dramáticas e há muito tempo deixou de ser, ela própria, uma novidade. No passado, ela contava com uma tolerância maior do público que aceitava encantado qualquer história minimamente convincente estrelada por um elenco competente. E, embora não tivessem um apuro técnico e cenográfico como o de hoje em dia, suas tramas eram desenvolvidas a partir de roteiros mais elaborados e bem escritos, sem os recursos apelativos tão em voga atualmente. Quem, como eu, acompanhou a televisão nos anos 80, deve se lembrar de novelas como Elas por Elas, Guerra dos Sexos, Ti Ti Ti e Vereda Tropical, sucessos absolutos de crítica e público, exibidas no outrora prestigiado horário das sete, hoje tomado por uma sucessão desoladora de produções bobas que, não raro, beiram o grotesco. É justamente nessa faixa de horário que a decadência é mais visível.

Muitos dos autores que ajudaram a construir esse passado glorioso, já se foram: Dias Gomes, Janete Clair, Cassiano Gabus Mendes, Ivani Ribeiro, Daniel Mas (que escreveu a divertida e inovadora Um Sonho a Mais, exibida em 1985, também às sete). Isso não pode servir como justificativa, já que outros (Gilberto Braga, Silvio de Abreu, Manoel Carlos) continuam em plena atividade. O problema não é propriamente de quem escreve, mas de como as telenovelas vêm sendo tratadas pela estrutura burocrática das emissoras. É chegada a hora de uma reforma ampla, antes que a criatividade se perca de vez e dê lugar a um esquema repetitivo de histórias requentadas e de baixo conteúdo. Se houvesse uma preocupação em caprichar nos roteiros como se capricha na parte técnica e cenográfica, já teríamos um bom começo. Mas, o ideal mesmo seria que tivéssemos no Brasil uma diversificação no gênero das produções como se vê no cinema americano e fôssemos capazes de ultrapassar os limites dos folhetins tradicionais, especializando-nos também em novelas de mistério, suspense, terror, aventura, policiais, thrillers, crítica de costumes, comédias políticas, História da Antiguidade, ficção científica e - porque não? -, dramas existencialistas com enfoque psicanalítico. Evidentemente, a TV é um veículo com linguagem e proposta diferentes e não se deve exigir de sua dramaturgia a mesma postura inovadora do cinema e do teatro. Nunca vai existir um equivalente televisivo de Ingmar Bergman, Fellini ou Orson Welles em nenhum lugar do mundo e nem é o caso. Por outro lado, a televisão não pode se acomodar da maneira como vem se acomodando. Um sopro de renovação, neste momento, seria mais do que bem-vindo, seria uma salvação, inclusive, para as próprias emissoras, sufocadas pelo ambiente morno, viciado e modorrento ao qual se autocondenaram, tendo de apelar para recursos extremos de teor notadamente apelativo, a fim de conter a qualquer custo a evasão da sua cada vez mais minguada e sonolenta audiência. Sabe-se que ambientes mornos costumam ser pouco hospitaleiros ao fluxo criativo. Assim como a nova geração de bons músicos não tem vez nas rádios corrompidas pelos jabás das gravadoras, acredito que muitos roteiristas não sejam devidamente levados a sério dentro das emissoras, justamente por terem bom gosto e boas idéias. Se não é assim, então me respondam por que cargas d'água uma obra-prima como Um Só Coração não é exibida às oito da noite em vez de às onze?

Festival acintoso de baixaria

Justiça seja feita. Pelo menos a programação da TV Globo - novelas, inclusive -, ainda está muito, mas muito longe de descer ao nível subterrâneo das suas concorrentes abertas privadas. O besteirol vazio e fútil do Big Brother não pode, em nenhuma hipótese, ser comparado à baixaria explícita de programas de auditório e de "jornalismo-verdade", que se multiplicam como parasitas, muitas vezes exibindo à tarde o que não deveria ser mostrado nem de madrugada. Felizmente, essas emissoras de terceira classe amargam níveis ridículos de audiência, o que pode ser interpretado como uma rejeição direta de um público que talvez seja muito melhor qualificado e exigente do que supõe a crença enraizada na alta cúpula televisiva. Esperamos que continue sempre assim.


Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 17/2/2004

Quem leu este, também leu esse(s):
01. Notas confessionais de um angustiado (V) de Cassionei Niches Petry
02. Adaptação: direito ou dever da criança? de Marina Marcondes Machado


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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
17/2/2004
09h45min
Ola, amigo! Belo texto sobre as telenovelas. Tenho saudades dessas novelas: Pantanal, Que Rei Sou Eu (maravilhosa e divertidíssima), Tieta, Pedra Sobre Pedra, Fera Ferida e O Clone, pela ousadia da autora. O resto é tudo a mesma coisa. Falta criatividade. Entretanto, faço uma ressalva no Jornalismo "Verdade", onde se discute a relaidade do nosso povo. Lamentavelmente, é necessário. Lembra do Jornal O Dia, que era chamado de Jornal Sangrento? Pois então, naquela época, os repórteres já gritavam sobre a violência no Rio de Janeiro, mas ninguém se importava. Até que um dia, a violência atingiu a classe média e se criaram ONGs e mais ONGs. E desde essa época, a realidade do nosso país vem sendo mostrada. Agora imagine se naquela época, quando o Jornal Sangrento gritava pelos pobres da periferia, tivéssemos - Governo e Sociedade - tomado alguma atitude decente? Muita coisa seria evitada. Enfim, entre a baixaria do Big Brother e a baixaria da nossa realidade, eu fico com a baixaria do nosso povo, que não recebeu, educação, cultura e oportunidades. Sds, Elaine P@iva
[Leia outros Comentários de Elaine P@iva]
18/2/2004
19h06min
Olá... Faço ainda uma observação: Além das semelhanças nas tramas das novelas, parece que o conceito de "bons atores" mudou bastante! As novelas boas a que assisti (algumas já citadas em seu texto) tinham atores realmente bons... com alguma essência! O que vemos hoje na tv - claro que há exceções - são atores mal preparados, que com certeza só estão na tal novela por indicação de alguém do meio... Quantos bons atores não conseguem um papel na tv por não se encaixarem no padrão de beleza da emissora? É fácil notar que nos últimos anos só foram contratados atores jovens "bonitinhos" mas que não têm experiência suficiente para criar um bom personagem!! A minissérie (que de mini não tem nada) "Um só coração" poderia ser mil vezes melhor se a história de amor entre os protagonistas não ofuscasse a bela história de São Paulo... A tv aberta precisa sim passar por transformações. A começar pela substituição de programas sensacionalistas por algo mais informativo, cultural e principalmente útil!
[Leia outros Comentários de Stephanie Maluf]
23/2/2004
13h49min
Seu artigo é excelente. A crítica feita às tele novelas, válida e muito bem abordada sob todos os aspectos. A mini série Um só Coração, não é a única. Houve outras como Memorial de Maria Moura extraída do livro do mesmo nome de Rachel de Queiroz e, mesmo e termos de tele novelas, tivemos as de época, como Escrava Isaura, Sinhá Moça e outras de cujo nome não me lembro agora. É pena que havendo tão bons romances de escritores brasileiros, não se aproveite mais, passando para a tela da TV, dando mais fácil acesso à literatura brasileira a todos os que não têm poder aquisitivo para compra de livros ou para o aluguel em bibliotecas privadas. Ainda assim, concordando com sua crítica, mas tentando enfocar o assunto com lentes mais otimistas, admitamos que, embora repetitivas e mesmo tolas, elas ainda são um produto de exportação. Além disso, dão oportunidade aos nossos atores que, não fossem as novelas, estariam à mingua visto que o teatro é, para o nosso público, um produto caro que alcança somente pequena parte da população. E mais, parece-me que somente agora, após um longo período de estagnação, o cinema vem se destacando novamente, mesmo em âmbito internacional. Parabéns pelo seu artigo! É um alerta para que se cuide com mais carinho da produção das tele novelas.
[Leia outros Comentários de Regina Mas]
24/2/2004
17h34min
Parabéns pelo artigo. Está muito bom e o assunto é muito pertinente. Concordo que a televisão é para alguns uma alternativa de lazer, mas para a grande maioria dos brasileiros ela é a única fonte de lazer, num dia a dia cada vez mais corrido e menos “remunerado”. Concordo também que as fórmulas folhetinescas se esgotaram e que a mini série “Um Só Coração” deveria ir ao ar num horário mais viável. Gostaria de acrescentar algo. Houve uma novela, que assisti a todas as vezes em que (re)passou, e que guardadas as proporções poderia ser comparada a roteiros usados por grandes cineastas. É “Roque Santeiro”. Apesar de algumas fórmulas folhetinescas misturadas à paixão da viúva Porcina pelo Sinhozinho Malta com peripécias incríveis e o retorno de um santo que jamais foi santo, havia uma equipe de cinema tentando filmar a vida do santo. Lembro-me que o cineasta, acreditando que o santo de fato existiu, tinha uns insights maravilhosos. Acho que foi o melhor roteiro que já vi em novela e que ainda não foi superado. Acho que para quem está escrevendo roteiros é uma boa sugestão assistir a essa novela.
[Leia outros Comentários de vera carvalho]
29/2/2004
20h39min
As autoras de novelas mais originais que existiram foram Janete Clair e Ivani Ribeiro. Dias Gomes enveredava por um caminho mais trabalhado, mais cult. As novelas de Ivani e Janete eram sempre uma diferente da outra. Iam de um extremo a outro (tema). Por exemplo: Mulheres de Areia é totalmente diferente de A Viagem, que é totalmente diferente de A Barba Azul, ou Aritana, todas de Ivani Ribeiro. No caso de Janete Clair, também. Pecado Capital nada tem a ver com Fogo Sobre Terra nem O Semideus. Todas estas novelas citadas foram sucessos daquelas autoras. Hoje é tudo pasteurizado e repetitivo. Por exemplo: Aguinaldo Silva escreveu quatro novelas como se fossem fotocópias umas das outras (Fera ferida, A indomada, Pedra sobre Pedra e Porto dos Milagres). Benedito Rui Barbosa, idem, com sua Terra Nostra, Renascer e O Rei do Gado. As últimas novelas que mais gostei foram O Clone e A Próxima Vítima, pela originalidade. Enfim, a partir dos anos 80 posso elaborar uma lista com algumas novelas boas, mas não é uma grande lista. O melhor mesmo ficou até os anos 70.
[Leia outros Comentários de Adilson]
8/3/2004
12h04min
Realmente nossas novelas caíram no marasmo, não diferente do cinema americano que sofre crise de originalidade e a música POP, vazia e repetitiva... Acho que o sintoma do "branco" criativo é bem mais amplo que imaginamos... As Emissoras precisam de coragem para inovar. Pelo menos, elementos de inspiração na sociedade contemporânea é que não faltam! Imaginem uma novela de ficção científica temperadas com um toque crítico e humorístico, tão presentes em marcos como "Que Rei Sou Eu?" e "Roque Santeiro"? Tecnologia e mão de obra já possuímos. A questão é: quem escreverá?
[Leia outros Comentários de Patricia Rocha]
13/4/2004
11h57min
Acho que a televisão brasileira, ao invés de apresentar programas como o BBB, deveria investir mais em programas educativos, como faz a rede tv. Sei que a emissora tem programas educativos, como o telecurso, mais não é suficiente, para emissoras que atingem grande número de telespectadores, deveriam sim, incentivar a cultura através da leitura, dando condições para que a população pudesse ter acesso aos livros. Quanto as novelas, eu me recuso a assiti-las, porque vejo que muitas levantam assuntos polemicos e as vezes tentam passar coisas que não tem nada a ver com a realidade que vivemos. Incentivam cada vez mais os jovens a não trabalhar mostrando o lado facil de ganhar dinheiro, e incitando a prostituição tanto de jovens que acham que irão se dar bem se derem um golpe ou coisa assim. Vemos que a familia perdeu um pouco dos seus valores, só que hoje é muito dificil vc educar um filho com tantas linguagens diferentes, o pior é que temos que assitir, para podermos orienta-los.
[Leia outros Comentários de Gloria]
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