COLUNAS
Segunda-feira,
1/3/2004
Produtores
Mario Marques
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Admiro produtores. A maioria. Tem gente, muita gente, que acha que produtor não faz nada, que o som já está pronto, que ficar atrás de uma mesa não faz parte de uma obra artística etc. Não procede mesmo. Um bom produtor pode salvar um disco ruim, regular, médio. Tem moral para pedir ao grupo ou artista que volte atrás e comece tudo de novo. Quem diz que produtor é um mero coadjuvante nunca esteve integralmente num estúdio e não sabe exatamente qual é sua real participação. Claro que não são todos, né? Mas, para ser produtor, tem que gostar da coisa. Não se passa mais de 200 horas trancafiado numa sala ouvindo o mesmo acorde dezenas de vezes, editando vozes, instrumentos, fazendo colagens, procurando loops, consertando erros, melhorando a monitoração, procurando filtros, efeitos, impunemente. E leva HD na caixinha para lá e para cá, faz backup, volta etc etc etc. E, no fim, ainda ter que escutar o resultado em casa, no carro, em outro estúdio dezenas de vezes.
É perda de qualidade de vida total.
É um dom.
E não estou falando nem da mixagem. Que é o ápice do estresse. (Mas um estágio do qual não se pode desligar. Ali está escrito o resultado de um disco.)
Produtores como Tom Capone, Chico Neves, Dudu Marote, Liminha, para citar quatro de uma lista de dez que mais admiro, são profundos conhecedores das entranhas e segredos de um estúdio. Chico Neves e Tom são os caras das guitarras. Com eles você acha o som que pensa, aquele que envolve seus sonhos instrumentais. Dudu é o homem dos beats, mas não só isso. Dizem que é o que melhor grava voz no Brasil. Sobre guitarras, não tenho certeza. Mas não há no país seis cordas captadas como nos discos do Charlie Brown Jr. Elas são levantadas no lugar certo, são quase perfeitas. Seria coisa do Bonadio? Liminha? Seu nome é groove.
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Um dia qualquer do ano passado estive no estúdio do Dudu. Passava das 20h e ele continuava com a mesma animação, pulando, rindo, falando sobre mil projetos, parecia ter acabado de chegar à sala. Em seu estúdio, Dudu processa boa parte dos melhores jingles produzidos por aí. Não só isso. Devagar, devagarinho, ele vem terminando seu próprio disco, de house. Diz que parou de mexer em discos pop. Nem parece o maestro que regeu grandes CDs de Skank e Pato Fu e, pouca gente sabe, emprestou sua bagagem - juntamente com o DJ Patife - a "Só tinha de ser com você", versão Fernanda Porto.
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Surpreendo-me a cada dia com o trabalho de Rafael Ramos, filho do diretor artístico da Deckdisc, João Augusto. Ele começou como olheiro do pai nos anos 90, indicando ao cast da EMI (onde J.A. era diretor artístico) nomes como Mamonas Assassinas. Aos poucos, Rafael deixaria seu grupo de lado, o Baba Cósmica, onde era o dono das baquetas e posteriormente o vocalista, e começaria a evoluir fora dos palcos e dentro do estúdio. Na ala de rock, do mais cru e simples, ao mais barulhento, ele é um dos melhores. "Admirável chip novo", de Pitty, que leva a sua assinatura e foi escolhido pelos leitores do Laboratório Pop o melhor de 2003, é um discaço. E as guitarras deste não perdem em nada para as apresentadas pelo Charlie Brown Jr. Foi Rafael também quem produziu o primeiro dos Hermanos, na minha opinião um dos discos de rock brasileiros mais vigorosos de todos os tempos. Sua aptidão foi encontrada. Mais: ele se transformou num descobridor de talentos do pop. De credibilidade, porque boa parte do que toca vira ouro.
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Fernando Magalhães, guitarrista do Barão, comeu o prato já quentinho. O disco de estréia dos Detonautas (que muitos não ouviram, mas ainda assim não gostaram) é um tratado de felicidade cósmica. Tudo funciona, tudo no lugar, as músicas são boas e as comparações com o próprio Charlie Brown cessam numa audição mais apurada. Quando entraram em estúdio, os meninos estavam prontíssimos, arranjos 80% lapidados. Magalhães teve o trabalho de organizar as idéias e concentrar-se nos takes, especialmente nos de guitarra. E o disco ficou excelente.
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Nem sempre o resultado comercial acompanha a qualidade. E há vários casos recentes. Recordo-me do disco de estréia do Cabeça de Nego, uma banda de reggae-soul de Piam, Belford Roxo, na Baixada Fluminense, que saiu, acho, em 1998. Foi produzido por Nilo Romero e tinha, além da qualidade impecável de gravação, boas versões, arranjos que faziam um crossover de r&b e reggae, letras regulares, românticas a maioria, instrumental grooveado de primeira. É um discaço. Mas não aconteceu.
Nada aconteceu.
Há fracassos para os quais não há explicação, embora sempre se procure alguma. Mercado, crise, falta de investimento, administração ruim etc.
Produções coletivas por vezes causam controvérsia, como o disco (único) do Farofa Carioca, que saiu em 1999 e inaugurou a tal MPC (foi um termo cunhado pelo colega Antonio Carlos Miguel, Música Popular Carioca, que acabou sendo vítima de preconceito fora da nossa bela orla). "Moro no Brasil", que combinava rap, soul, samba, funk, embelezado por canções belíssimas ("São Gonça" é um dos sambas-gafieiras mais bonitos da última safra carioca), é também um produto pop acabadíssimo.
Mas o disco vendeu pouco, a Universal não quis mais a turma (eram 12 músicos) e agora a banda tenta se reerguer (sem Seu Jorge e Gabriel Moura) com o vocalista Mario Brother.
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Bem, o produtor não é só aquele que conhece o funcionamento do Pro-Tools. É também o cara que joga as camisas para os músicos certos, que conhece o repertório nota por nota e entende do gênero que manuseia. O produtor pode não saber diferenciar um sol de um mi, mas, se ele tiver peito para dizer que o take não está bom, vale muito mais. Ou mesmo desistir de uma canção que no estúdio considera o resultado abaixo do esperado. Ou ainda ter a cara-de-pau de jogar fora um take de um músico e chamar outro para fazer de novo.
Tudo é relativo.
Mas é óbvio que é muito melhor o artista (ou banda) se produzir. Como faz o Djavan. Ou o Gil. Ou muitos deles, aqueles que têm a concepção na cabeça. E que preferem se estressar com tantas responsabilidades a ter que se indispor com o comandante da nau.
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"Cometi" três produções na minha vida. Uma do CD/DVD "Linda juventude - Ao vivo", disco de Flávio Venturini, que comemorou seus 50 anos; o disco de estréia do Acid X (com André Valle), banda carioca que promove o encontro do acid jazz com o drum'n'bass (mas que também tem rock); e o de estréia de Renata Gebara (nesse fiquei mais na cavucação de repertório), com Alexandre Castilho e Victor Z.
É exaustivo. E, para mim, todos foram traumatizantes. No disco de Venturini eram 12 convidados; no do Acid X, gravamos cordas com Marcus Viana em BH, muitas horas de carro numa estrada péssima; o de Renata foi o primeiro na minha frente, muita ignorância e erros de avaliação de minha parte (Castilho e Victor me salvaram). Porém acho que os três discos soam bem.
Mas é um trabalho insano.
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Nelson Motta é um jornalista que desde a bossa nova vive dentro de estúdio. Sua disposição e entendimento de mercado, marketing e música fizeram dele uma referência na área. Mas a tecnologia mudou muito e as gravações, antes naturais, orgânicas, hoje são fabricadas ao gosto do freguês. À distância sinto que Nelsinho perdeu em algum lugar da última década o romantismo de estar num estúdio. Não é para menos. Ele já esteve encafifado em trabalhos de Elis a Lulu Santos, exemplos do que de melhor a música brasileira fez no passado. No caso de Lulu, ainda fazendo.
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Usar o AutoTune hoje, para afinar vozes especialmente, faz com que a essência das gravações seja jogada no lixo. Um lixo orgulhoso, pelo menos para os que dominam a técnica, a tecnologia e têm ouvido profundo. Elis Regina gravava poucos takes e, quando ouvimos suas gravações antigas, percebemos o quão preguiçosos ficaram os produtores. Podiam ensaiar mais, observar mais, se preparar mais.
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O pior no papel de um produtor é não conseguir saber quando é o ponto final de um disco. Hum, falta uma cama aqui; hum, uma outra guitarra dedilhada aqui ficaria bem; hum, vamos dobrar as vozes? Bom, seria mais funcional que os produtores despejassem tempo na pré-produção. Se o fizessem, os discos não soariam tão retalhados.
Mas a tacada é: Chega! Acabou!
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Tem um tipo de produtor que eu não gosto. Aquele que, em vez de burilar a musicalidade de seu produto e pensar em qualidade acima de tudo, foca suas mãos no refrão certeiro, no arranjo embalado para o sucesso. Vejo bandas como LS Jack assim. Os meninos são supertalentosos, grandes músicos, mas parecem ter entendido que música pop se faz no estúdio.
Não, não. Música pop é natural. O refrão vem dançando para o autor, a melodia corre atrás do cantor. E você nunca pode dizer: "Quero que meu disco soe como Lenny Kravitz".
O próprio Bonadio, que, ao mesmo tempo em que joga tinta no Leela, joga confete no Rouge e no Bro'z, quebra a cabeça para obter sua fórmula de sucesso. Aposta em dez nomes para ser bem-sucedido com três. Tomara que o Leela esteja entre esses três.
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Na diluição de minhas cervejas Sol com meu amigo Paulinho Loureiro (cantor que Djavan considera um dos maiores do Brasil) essa noite, conversamos sobre a produção de seu próximo disco. Ele foi abandonado pela Sony, onde lançou um disco de covers, mas tem um trabalho autoral pop de cair o queixo. O cara é baterista, toca violão, canta como se Stevie Wonder fizesse um dueto com Jay Kay em Ipanema e ainda compõe.
Ele deixou eu brincar de produtor mais uma vez.
Só não me chama para mixar.
Não existe nada mais chato do que acompanhar uma mixagem.
Melhor escrever.
Nota do Editor
Texto originalmente publicado no recém-inaugurado site Laboratório Pop. (Reproduzido aqui com a devida autorização do autor.)
Mario Marques
Rio de Janeiro,
1/3/2004
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