COLUNAS
Terça-feira,
9/3/2004
Roteiro musical paulistano
Fabio Silvestre Cardoso
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Não faz muito tempo, a cidade de São Paulo esteve no centro das atenções, não tanto pelas enchentes ou pelo alto índice de desemprego, mas em função da comemoração de seus 450 anos. Na ocasião, muito se escreveu sobre a cidade e suas nuances. Inclusive neste Digestivo, que reservou um especial para o tema, outros colunistas publicaram suas percepções acerca das inúmeras idiossincrasias da capital paulistana. Passada a festa, numa espécie de balanço, é possível notar que pouco se comentou a respeito dos artistas que, de uma forma ou de outra, tinham a cidade como palco ou como tema principal de suas obras. Quem comentou a obra do escritor modernista António Alcântara Machado (1901-1934), por exemplo? Ou, ainda, do (bom) cinema "metropolitano" de Ugo Giorgetti, que em filmes como Sábado (1995); Boleiros (1998) e O Príncipe (2002) propõe uma abordagem da cidade para além dos clichês "capital gastronômica do Brasil... metrópole cosmopolita" - epítetos que, se não diminuem, enquadram uma cidade cuja diversidade merece ser conhecida por seus moradores (ainda que muitos destes não dêem a mínima para isso).
Nesse sentido, é reconfortante ver a honesta - e não menos bela - homenagem da Gravadora Lua Discos à cidade com o CD São Paulo e a lua. Nas palavras de Thomas Roth, diretor e idealizador do projeto, "artistas, produtores, músicos, todos [...] em torno de um único propósito. Revelar a alma caleidoscópica, rica, multicolorida da história musical desta cidade". Para isso, foram reunidas 18 canções que traçam um panorama interessante de São Paulo. Diferentemente do Carnaval paulistano deste ano, cujo objeto de louvor deveria ser a cidade, a descrição de São Paulo nestas músicas mostra, sem ufanismos, que a criatividade está além de contar a história dos imigrantes italianos no Bixiga. Comprova, aliás, que o pluralismo da capital se dá também por meio da riqueza de estilos, e não só pelo cardápio variado de seus restaurantes.
Com efeito, é a partir das faixas selecionadas que se pode notar como a cidade se divide em muitas até mesmo na sua representação. Ao mesmo tempo em que o disco é marcado pela unidade, em razão dos compositores terem a cidade como tema, São Paulo é apresentada em fragmentos, retalhos, que ressaltam as diferenças e os pedaços que compõem a terceira maior capital do mundo. Assim, o repertório do álbum contempla desde as célebres "Saudosa Maloca", "Samba do Arnesto" e "Trem das Onze", de Adoniran Barbosa, até as não tão conhecidas "Sonora Garoa" e "Tradição". Nesta última, a letra cantada por Juliana Amaral lamenta: "O samba não levanta mais poeira/ asfalto hoje cobriu o nosso chão/ lembrança eu tenho da saracura/ saudade eu tenho do nosso bordão/ Bixiga hoje é só arranha-céu/ E não se vê mais a luz da lua/ Mas o Vai-Vai está firme no pedaço/ É tradição e o samba continua". Apesar do tom nostálgico, a canção simboliza bem o caráter destas homenagens. Antes de exaltar qualidades inexistentes ou imaginárias, os compositores - assim como os intérpretes - decidiram apresentar sua visão mais passional da cidade, como em "São Paulo (Coração do Tempo)": "Teu postal sem cor/ Teu real valor/ Que se oculta em suas sombras".
Na maior parte das vezes cumprindo seu papel de oferecer uma nova leitura, o álbum não apresenta maiores invencionices ou exageros, ainda que a versão da já citada "Trem das Onze" fuja completamente do seu estilo original. Já "Ronda", de Paulo Vanzolini, na voz de Jards Macalé, é sem dúvida uma das pérolas do disco. Nela, a melancolia e o tom pesaroso da canção estão garantidas num casamento perfeito entre a voz grave, quase embargada, de Macalé e o toque singelo do violão.
"Augusta, Angélica e Consolação", na interpretação enérgica e distorcida de Rebeca da Matta, usa e abusa dos efeitos da programação eletrônica, o que dá à música uma força igual ou maior do que quando ela é entoada por Tom Zé, o compositor. Talvez um dos raros casos em que a versão de um intérprete se torne definitiva.
Sobre o "Tema de São Paulo/Amanhecendo", cabe algumas considerações. A primeira é de que, apesar da letra reiterar a lenda da cidade que nunca dorme e que trabalha sem cessar, nota-se que, ao menos desta vez, sua interpretação manteve-se sóbria, isto é, a releitura não tenta dourar a pílula. Faz, antes, uma crônica da rotina de todos os paulistanos. Ao narrar esta rotina, a canção não consegue deixar escapar o fator da solidão, que, para o bem ou para o mal, permeia a relação dos paulistanos com a cidade. É esta solidão, aliás, o único elemento presente (ainda que indiretamente, como referência) em todas as músicas do disco. Longe de ser um demérito à homenagem, este fato revela um elemento já conhecido na arte: como a tristeza pode ser uma beleza.
Post-Scriptum
Não é à toa que o livro que melhor soube descrever São Paulo, ao menos no campo da não-ficção, tenha como título A Capital da Solidão. No livro, escrito pelo jornalista Roberto Pompeu de Toledo, consta que um temor acompanhou o desenvolvimento da cidade ao longo de seus primeiros três séculos de existência: o risco de desaparecer. Isso porque a cidade, de uma forma ou de outra, sempre viveu às voltas com a necessidade de mudança de ciclos, fato que levava as pessoas a se questionarem se deviam ficar mesmo lá. De uma certa forma, este roteiro musical paulistano apresenta essas dúvidas e inquietações em forma de canções.
Encarte
Uma pena que o encarte deste disco seja tão pobre em informações sobre as canções, os compositores e seus intérpretes. Seria interessante ao ouvinte conhecer mais sobre algumas as letras, por exemplo. Além disso, uma edição de luxo, que poderia ser acrescida com trabalho gráfico e entrevistas, faria mais justiça à qualidade do álbum de um modo geral.
Para ir além
Lua Discos
Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo,
9/3/2004
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