A pior coisa que existe para um escritor é o sucesso. O motivo é muito simples: a literatura é uma arte que envolve risco e isso implica em aceitar, sem nenhum resmungo, o fracasso inerente na empreitada. Infelizmente, o sucesso atacou a obra promissora de Bernardo Carvalho. Seu nome e seus livros são incensados pelos mandarins da imprensa cultural como A Nova Esperança da Literatura Brasileira; rascunhos de ensaios a seu respeito são publicados em cadernos culturais no intuito de dar ao leitor uma espécie de sentido postiço que, exceto por um lampejo ou outro de talento imaturo, não chegará a lugar nenhum; e, last but not least, existem leitores que, ao lerem qualquer linha de seus romances, não percebem que neles existe uma casca de niilismo que somente os levará para a pior de todas as mortes - a morte do Espírito.
É provável que nem Bernardo Carvalho saiba do perigo - para ele e para a mente de um leitor despreparado e, sobretudo, ingênuo. Seus dois últimos lançamentos, os romances Nove Noites (2002) e Mongólia (2003), são produtos de carpintaria literária esforçada, uma imitação pálida de Thomas Bernhard com alguns toques de Joseph Conrad e guias do Lonely Planet para dar a impressão de "diversidade cultural" ou de que existe um "pluralismo de visões". Mas não passam de produtos de aprendizagem que, se fosse um escritor mais rigoroso, deixaria guardados na gaveta. Em Nove Noites, Carvalho cria um paralelo entre sua própria vida e a trajetória misteriosa do antropólogo Buell Quain, que se suicidou no Xingu em 1937; em Mongólia, há uma trama contada em três vozes narrativas que deveriam se cruzar em uma suposta epifania, mas terminam num anti-climáx digno de novela mexicana. Em ambos, ele age como o escritor que acredita estar escrevendo algo importante, que acredita que o que está no papel é algo relevante, mesmo que, em público, negue tudo isso e pratique um ceticismo de armário sobre a perenidade da literatura. Trata-se, enfim, de uma obra esquizofrênica, elaborada por uma pessoa que ainda não sabe de suas potencialidades como artista.
A afirmação acima pode ter sua dose de ironia, mas esconde uma tragédia implacável. Se a obra de um talento promissor como Bernardo Carvalho cai nessa sinuca dramática, é sinal de que a literatura de um país está em fase terminal. Afinal de contas, a cultura de uma nação não evolui somente através de gênios; estes são sempre as exceções, as lacunas inexplicáveis da evolução espiritual. Quem constrói realmente a cultura, projetando-a para a integração de uma civilização, são os homens de médio porte, os intelectuais que, conscientes do seu papel moral na formação dos indivíduos, lentamente moldam a educação e a língua de um povo, não de acordo com os padrões de uma determinada época e sim segundo as leis da perenidade. O fato de uma nação como o Brasil possuir apenas gênios do porte de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Bruno Tolentino não é, definitivamente, uma boa notícia. Não são os formadores de uma cultura sólida e fértil; eles existem justamente para revolverem uma cultura que está decrépita e transformarem-na em algo novo e frutífero. Entretanto, o fardo de fazer essa mesma cultura perdurar através da consciência humana e dos anos está nas mãos dos bons escritores e dos bons intelectuais.
Como Bernardo Carvalho não é definitivamente um gênio, mas é um talento promissor, podemos que está incluído na classificação de "bom escritor". Contudo, com Nove Noites e Mongólia - este último premiado injustamente com o prêmio Portugal Telecom 2003, quando, no mesmo evento, concorria com Meditação Sob Os Lajedos, de Alberto da Cunha Melo - Carvalho dá amostras de que seu talento é algo do passado. Seus romances iniciais (em especial, Os Bêbados e os Sonâmbulos e Teatro) tinham algum frescor, apesar do estilo mecânico, sustentados por frases curtas e de tom impessoal. Muitos críticos reclamavam que ele imitava Thomas Bernhard, influência que o próprio escritor afirmava em seus artigos literários para a Folha de São Paulo e também em diversas entrevistas. Ora, não havia nada de errado nisso: de fato, Bernhard era um grande escritor e sua coragem moral, por mais auto-destrutiva que parecesse, poderia ser um exemplo para nossos inteliquituais brazucas. Mas tudo dava a impressão que o problema não era com o mestre e sim com o pupilo.
Havia indícios dessa crônica de uma morte anunciada. Em primeiro lugar, Carvalho habitua a sua narração em duas vozes narrativas que são aparentemente distintas, mas no final revelam-se como versões de uma mesma história. A estrutura binária tenta ser um artifício contrastante; contudo, em Nove Noites, o artifício domina o impacto emocional do texto e o que sobra é uma mera colcha de retalhos, ligada apenas por um tênue fio narrativo. Carvalho tenta consertar esse dilema em Mongólia ao incluir uma terceira voz, mas a indecisão entre ser um guia de viagens e uma história de mistério revelam que ele não está querendo agradar a si mesmo e sim a uma casta de leitores que, como diria um dos integrantes dessa mesma patota, estão "encharcados de tolerância cultural". E, em segundo lugar, sua preferência em reduzir qualquer comportamento humano como uma mistura bizarra de impulsos homossexuais reprimidos e de tendências auto-destrutivas dão um travo amargo ao supor até onde vai a limitação intelectual do rapaz.
Ainda assim, este não é o verdadeiro problema. Mesmo que Carvalho fosse o queridinho entre um determinado grupo de literatos, mesmo que ele não soubesse nada de técnica literária, mesmo que tivesse o aguilhão da soberba - isso não é nada se comparado ao seu erro maior: o de acreditar que a vida não tem sentido ou, o que é pior, de acreditar que ela tem, mas nunca seremos capazes de descobri-lo. E aqui chegamos perto do xis da questão na obra de Bernardo Carvalho e, se formos além, em toda literatura brasileira contemporânea: Se a criação artística é também uma busca pelo sentido da vida em um mundo corrompido pelos homens, como uma obra de arte pode pregar justamente o contrário? No livro recém-publicado, Gramáticas da Criação (Editora Globo), o crítico George Steiner discorre sobre como os artistas do nosso tempo perderam o eixo de que toda a criação artística é, em maior ou menor grau, um diálogo com o Sagrado e como essa perda levou a sociedade cair na ilusão sinistra do niilismo. Pois esta é precisamente a tragédia não só de Bernardo Carvalho, como também de Arnaldo Antunes, Patricia Melo, Chico Buarque, Rubem Fonseca e que, infelizmente, contamina a nova geração, representada por Marcelo Mirisola, Clarah Averbuck e Paulo Polzonoff Jr. São pessoas de talento inegável, mas que fazem de tudo para fugirem do combate entre luz e trevas que é a vida. Suas obras são reflexos de consciências deformadas por forças demoníacas que brotam de suas almas e que não conseguem controlar porque falta aquela capacidade de ver acima das desgraças e dos prazeres, de ver que a condição humana é, de fato, um "pega-pra-capar", mas que guarda uma pérola oculta de sabedoria e luz. Contudo, o medo da travessia e da incerteza que ela causa em qualquer coração sincero provoca uma perturbação que poucos conseguem suportar. E é dessa forma que a arte desses sujeitos, em especial a de Bernardo Carvalho, implode numa projeto rasteiro de literatura que não leva a lugar nenhum simplesmente porque seus criadores não sabem para aonde vão.
Pois um escritor somente tem controle de suas forças demoníacas e, no fim, dos meios de sua criação se ficar na penumbra do fracasso e nunca nos holofotes do sucesso. Toda e qualquer criação - especialmente a Criação Divina - vive e respira o fracasso. Veja o próprio Deus: a todo momento o ser humano parece provar que o Genesis foi um lamentável engano e que a Crucificação foi um truque de prestidigitação. Mas há algo que impele Deus a continuar o investimento na nossa espécie, como se fosse a única coisa razoável a se fazer. O que seria isso, ninguém jamais saberá e aí reside o doloroso enigma da esperança. O escritor deve fazer o mesmo: persistir na sua obra, não se importando com o sucesso ou com os atrativos do mundo porque estes são apenas passageiros e não pagam a recompensa que somente a grande arte alimenta. O triste caso de Bernardo Carvalho e de seus companheiros de niilismo é que a arte que criam é uma arte da fuga da vida em toda a sua riqueza, complexidade e, sobretudo, mistério. Eles retiraram a nobreza que existia em nossa literatura e somente um relacionamento intenso com o fracasso de nossos atos e com a perseverança de fazer o bem provocará o retorno da grande arte dos verdadeiros mestres - aqueles que não só acreditavam, como também sabiam que o sentido da vida está aí, pronto para ser descoberto e, sobretudo, redescoberto. Enquanto este panorama cultural digno de hollow men continuar - naquele deserto vazio da indecisão que termina na morte da alma -, espera-se - sim, pois será uma verdadeira espera - que não cheguemos ao ponto de recitar, sílaba por sílaba, o famoso verso de Eliot (apud Cavalcanti): Because I do not hope to turn again. Porque, afinal de contas, tudo o que queremos é voltar para algum lugar e que, algum dia, o tremor e o terror da nossa condição se revele apenas como um estágio precário na vida da eternidade.
Caro Martim, com todo respeito à sua crítica e à sua opinião, não creio que o niilismo prejudique a obra literária. Os autores que você citou estão entre os mais criativos e destacados de nossa literatura contemporânea. Nossos clássicos mais antigos também são niilistas e retratam a condição humana sem nenhuma esperança (Machado de Assis, Graciliano Ramos...) Não parece ser uma característica de uma determinada geração. Para efeito de comparação, ateus (e niilistas) como Joyce, Beckett, Hemingway ou Cortázar estão entre os marcos da literatura do século 20.
Não sei se os autores atentos ao "sagrado" (como você diz) seriam capazes de produzir obras literárias de tal qualidade. Abraços. Perce Polegatto