COLUNAS
Quinta-feira,
25/3/2004
João Paulo Cuenca e seu Corpo Presente
Renata de Albuquerque
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Parece incrível que este Corpo Presente seja o livro de estréia de João Paulo Cuenca. A escrita deste carioca de 25 anos tem a maturidade que muitas vezes não se encontra nem mesmo em livros de autores que já estão em sua segunda ou terceira publicação. Talvez a experiência de Cuenca conquistada nos blogs, mídia na qual é veterano, seja uma explicação para este texto redondo, tecido com cuidado.
Nem sempre é assim. Muita gente vinda de blogs tenta dar corpo ao seu texto, e trazer à luz um livro. Mas muitas vezes os blogueiros se perdem e não chegam nem perto do que se poderia chamar de literatura.
Não é o que acontece com este belíssimo Corpo Presente. Cuenca, apesar de não fugir aos parâmetros de outros escritores de sua geração, consegue encontrar saídas originais para sua literatura.
Corpo Presente é um romance urbano, que retrata uma certa marginalidade de adultos jovens envoltos em questões permeadas sempre por sexo e sobrevivência. Esse romance urbano tem uma ação de cortes cinematográficos, levando o leitor a lugares caóticos e inóspitos, que muitas vezes estão dentro da alma e do pensamento do próprio narrador.
O narrador do livro de Cuenca busca, em cada página, Carmen, o corpo presente que povoa os sonhos e assombra a realidade do narrador, que seria protagonista se essa sombra de faces múltiplas, Carmen, não fosse a razão única de todo o universo do livro.
Carmen está em cada cenário, em cada situação deste romance composto de pequenos contos. Lido do início ao fim, de forma linear, Corpo Presente revela uma trama com ligações inusitadas dessa busca infinita. Mas cada capítulo é um conto, uma esperança (ou uma desilusão) de encontro, que nem sempre se mostra possível.
Os capítulos são numerados com números primos, que se dividem apenas por si mesmo e por um. Assim, indivisíveis e singulares, fazem um retrato múltiplo de Carmen, e somados compõem esse todo desconcertante e perturbador, como é a procura pelo ideal feminino.
Mãe, mulher, amante, cadáver, prostituta: não há fantasia que Carmen não vista. Não há modelo no qual o narrador não tente enquadrar e encontrar Carmen. Mas ela não se deixa rotular. Onipresente, Carmen marca por sua ausência, que desespera e estimula o narrador a continuar sua procura e desenvolver com ela uma relação quase simbiótica. Essa mulher é uma lembrança, é um fantasma, é uma questão a ser resolvida, é o elemento que cerceia a existência, ao mesmo tempo dá sentido a ela.
Parece que ela está sempre dois passos à frente, que nunca se deixa capturar, apesar de muitas vezes estar ao lado. Sempre intangível.
Em Corpo Presente há uma volúpia constante, como em uma roda gigante na qual o leitor passeia de olhos vendados. Muitas vezes em uma mesma página, o leitor se depara com muitas Carmens, muitas facetas do mesmo e fragmentado mundo de Cuenca.
E o autor sabe muito bem onde quer chegar quando leva o leitor nessa busca. O texto de Cuenca é seguro de si. Confiante, parece saber sempre qual o próximo passo, o destino final daquela busca. O texto se insinua para o leitor, como Carmen para o narrador.
O autor encontra na sua narrativa cheia de realidade brutal, marginalidade e sexo, espaços para exercer um idílio que nem sempre tem vez nas narrativas chocantes e invasivas típicas da literatura urbana atual. Esse é um dos grandes trunfos do livro, que insiste em mostrar um delírio atormentado dos personagens e pelo qual o leitor deve se permitir envolver.
A tensão é crescente, mas não chega a oprimir ou torturar o leitor. Cuenca manipula seu texto com tamanha habilidade que consegue manter o leitor a uma "distância segura" da sua narrativa: nem tão longe que não consiga se envolver, nem tão perto que se sinta oprimido.
A obsessão do narrador por Carmen e a estranha relação que os personagens travam empresta ao livro uma intensidade quase dramática. E Cuenca se vale disso, em um texto que resvala em cinema: muitas cenas são quase um roteiro pronto, com cortes estudados, cenários cheios de significado e diálogos que parecem casuais.
Carmen é um Corpo Presente ao qual se presta reverência. E com ele Cuenca abre passagem no cenário da literatura nacional, com o frescor de estreante e a competência de um veterano das letras.
Para ir além
Renata de Albuquerque
São Paulo,
25/3/2004
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