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Quinta-feira, 13/5/2004
Amar é...
Adriana Baggio
+ de 6600 Acessos
+ 3 Comentário(s)

O beijo, de Gustav Klimt

Muito se fala sobre o amor, mas a maioria das pessoas não pensa muito nele no sentido de refletir, questionar, tentar analisar o que se chama de amor dentro de um contexto mais amplo que os limites do coração. O amor é mais do que uma fonte de inspiração de poemas, músicas e obras de arte. O amor, considerando também os aspectos a ele associados, é uma importante manifestação cultural da humanidade, tão importante que tem dado origem até a livros sobre sua história.

História do amor? É isso que propõe o livro de Dominique Simonnet, A mais bela história do amor (Difel, 2003), que, na verdade, de bela não tem nada. O amor foi e talvez continue sendo uma das mais cruéis formas de controle da humanidade.

Para começar, é preciso considerar o amor em três aspectos: o social, que é o casamento, o espiritual, que é o sentimento, e o biológico, que é o prazer. Por incrível que pareça, a predominância de cada um desses aspectos é inversamente proporcional à ordem de ocorrência deles na história da humanidade, já que fomos primeiro seres com orientação biológica, instintiva, depois espiritual, ritualística, e por fim orientados para a sociedade, para a convivência com o outro. Com o amor, é o contrário: primeiro se valorizou o seu aspecto social, depois o espiritual, e só mais recentemente, o biológico.

Simmonet é redator-chefe da revista francesa L´Express. Talvez por isso, o formato escolhido para o livro tenha sido o de uma grande entrevista com diversos estudiosos do tema. Também o texto coloquial, básico, torna a leitura acessível. É uma forma de aproximar as pesquisas da academia dos não-iniciados. O que não impede que seja tratado em sua forma mais profunda, como acontece com os trabalhos originais dos pesquisadores entrevistados.

É importante delimitar o conceito de amor como algo que diferencia o ser humano dos outros animais. Assim, o amor enquanto afeto, solidariedade e desejo de agradar ao próximo só surge quando o homem pré-histórico assume comportamentos distintos dos animais. Apesar da falta de documentos que possam explicar a origem do amor, os historiadores supõem que ele tenha surgido na mesma época em que os seres humanos passaram a enterrar seus mortos.

O ritual do enterro demonstra cuidado, o que pode ser uma pista da existência de um sentimento, e não apenas de relações instintivas entre os homens dessa época. O livro relata a descoberta do corpo de uma mulher que morreu aos 35 anos, uma idade avançada para a pré-história. Essa mulher apresentava fratura em um dos braços, provocada em uma idade mais jovem, que deve ter limitado seus movimentos. Faltava também uma parte da mandíbula, talvez causada por uma infecção óssea, o que provavelmente fez com que ela só pudesse se alimentar de pastas e líquidos. Apesar desses problemas, os restos mortais mostraram que a mulher era saudável. O que os historiadores deduzem dessa descoberta é que ela foi cuidada, seus alimentos preparados de forma que pudesse consumi-los. Um tratamento que, mesmo hoje, muitos doentes e pessoas incapacitadas não recebem. Para os pesquisadores, esse é um indício da existência do amor.

Apesar do controle do sentimento e da sexualidade afetar homens e mulheres, é a parcela feminina que mais sofreu com a interferência da Igreja e do Estado. Quando os homens deixaram de ser nômades e passaram a se agrupar em aldeias e povoados, surgiu o casamento. Com isso, a união entre homens e mulheres passa a ter um aspecto econômico.

A impossibilidade de escolha da parceira era a única desvantagem do homem nos casamentos antigos. Para as mulheres, além dessa existia a grande desvantagem do controle. O casamento sempre foi uma maneira de resguardar a mulher de qualquer chance de relacionamento sexual e, portanto, de concepção de filhos de outro parceiro, o que ameaçaria a tribo ou a estrutura familiar. Sempre se partiu do princípio de que a mulher era desonesta, infiel e tinha má índole por natureza. O que salvou muitas mulheres foi a viuvez e, por muitas vezes na História, o divórcio. Praticamente em toda a civilização ocidental, mulheres viúvas ou divorciadas com dinheiro tiveram uma relativa liberdade.

O sentimento, mesmo entre os esposos, nunca foi visto com bons olhos, principalmente pela Igreja. O prazer sexual, então, nem pensar. Apesar de a arte Clássica e pós-Idade Média representar nus, homens e mulheres em situações sensuais e eróticas, os historiadores defendem que essa não era a realidade. É como se a arte refletisse mais um desejo do que a vida real. O sentimento começa a ser aceito na época do Renascimento. O prazer, no entanto, só a partir do fim do século XIX.

Talvez a parte mais profunda do livro de Simonnet seja o final, nos capítulos dedicados ao prazer. Não porque falar de prazer seja melhor do que de sentimento ou contrato. Mas porque estamos nessa época, e a busca do prazer nos afeta profundamente.

Deixamos os tabus de lado; as pessoas se casam e se separam à vontade; a sociedade já não discrimina os divorciados; estuprar e espancar mulheres tornou-se crime. No entanto, continuamos em crise.

O acesso ao prazer não melhorou a relação das pessoas com o amor. Ao contrário: o acesso ao prazer virou obrigação. Transar e ter orgasmos não é uma conseqüência, mas um fim em si. Estamos na era do caráter utilitário do sexo.

As mulheres já não estão mais presas aos relacionamentos. Os homens já não carregam o pesado fardo de sustentarem sozinhos a família. Porém, ambos estão infelizes com seus relacionamentos. Uma das hipóteses para essa situação é que a liberdade sexual revelou uma incompetência do ser humano em lidar com suas frustrações e com a imperfeição do outro. Houve uma época em que um relacionamento baseado no respeito seria uma grande conquista. Hoje queremos mais do que isso: queremos tudo! Um parceiro que seja a alma gêmea, com as mesmas afinidades, que tenha bom desempenho profissional, que seja belo, magro e forte, que nos ame apaixonadamente, que seja gentil, que faça bom sexo, que não use mocassins bordôs com meias brancas, e por aí vai.

É evidente que, mesmo com todo o comodismo, o controle nunca vai ser melhor do que a liberdade, ter vinte partos nunca vai ser melhor do que a pílula, agüentar um relacionamento insuportável nunca vai ser melhor do que o divórcio. No entanto, o amor em outros tempos permitia que colocássemos a culpa em agentes externos: a família, a Igreja, a sociedade, as leis. Hoje, não: se há culpados pelo fracasso de nossos relacionamentos, somos nós mesmos.

Post-Scriptum
Essa coluna não tem pretensões de auto-ajuda e nem de divã de analista, mas aqui vão duas sugestões de reflexão: 1) olhe para o seu relacionamento, ou para a falta dele, e veja se a parte ruim dessa situação não está em você mesmo; 2) pare de comprar revistas e livros com testes e fórmulas mágicas para o amor. Prefira leituras que tratem do relacionamento entre as pessoas de forma madura e realista. Suas ilusões vão cair por terra, mas o seu espírito vai voar muito mais alto.

Para ir além






Adriana Baggio
Curitiba, 13/5/2004

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* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
13/5/2004
14h50min
Teoriza-se muito sobre o amor. Tudo já foi dito e explicado. Dissecaram o amor feito rã de laboratório. As mulheres -por exemplo- se tornaram tão obcecadas com esse "negócio" de amor e romantismo que perderam a essência de fêmeas que são, para se tornarem moçinhas casadoiras (como se diz lá em Portugal) com faro aguçado para enlaces financeiramente promissores. Esse troço de "Antropologia do Amor" é conversa pra boi dormir. O que todos nós queremos -Homens e mulheres- de verdade é descobrir os segredos da paixão. Ou seja, uma coisa bem diversa do amor.
[Leia outros Comentários de Gui]
11/6/2004
09h06min
O amor quando teoria ainda é amor?
[Leia outros Comentários de Força e fé!]
2/1/2010
23h21min
Amar é..., nossa, adorei! Sou muito emotiva, Adriana. Realmente, as pessoas ficam procurando "em quem" ou "em quê" pôr a culpa. Mas, muitas vezes, elas são as próprias culpadas... Excelente leitura, parabéns.
[Leia outros Comentários de Ivis Duarte]
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