Voltando de carro, numa sexta-feira à tarde, da faculdade para casa, depois de uma excelente aula de "Administração de riscos usando derivativos", estava ainda tão concentrado na matéria - pensando em oportunidades operando commodities no Brasil - que não acreditei no que se passava do outro lado da janela. Aproximadamente trinta adolescentes, em Higienópolis, se concentravam na porta de uma lan house, e uma pimpolha gordinha, do lado de fora do estabelecimento, fazia sinal de venha, para alguém ainda não identificado. Um moleque magro, com o rosto coberto por espinhas e a topete embaixo do boné, fingia acalmar a gordinha, enquanto a provocava. O bujãozinho estava estourando. E então se aproximou, vestida de preto, uma outra menina, magra e alta, que com 15 anos mascava chiclete com a malícia dos baixos meretrícios. Os estudantes se excitavam. O garoto de boné se afastou. A magra agarrou, em um pulo, as banhas da gorda; a gorda socou onde deveriam estar os peitos da magra. Ambas caíram no chão. Cabelos voavam. E, em volta, meninos e meninas se divertiam, soltando gritinhos e sorrisos enquanto as duas se espacavam na sarjeta.
Encostei e desliguei o carro, assim que encontrei uma vaga, e desci. Só que havia, ao lado das meninas, um carro bacana estacionado, com um homem dentro - que desceu, e separou a briga antes de mim. A gordinha cumprimentou o cara de boné, que a retribuiu com um beijo. A magrinha, arranhada, voltou também para sua roda de amigos, com uma risada nervosa. O homem que separou a briga abriu a porta de passageiro do carro que guiava, e enfiou a gordinha dentro, irritado. A gordinha estava nitidamente feliz. Adorou a briga. Agora saia, de motorista, e voltava para casa, para jantar com seus pais. A magrinha talvez fosse antes para a casa do namorado orgulhoso, jantar com a família dele, como se nada tivesse acontecido - e à noite deve ter caído na balada, com as amigas, esgotando a energia que restou. O resto da molecada - depois de aplaudir a briga - deve ter voltado para a frente do computador, e massacrado seus inimigos virtuais.
Eu fiquei arrepiado. E o que me assustou não foi a briga isoladamente: foi como ela aconteceu. Como se duas meninas de quinze anos se estapeando na calçada fosse normal, bonito e engraçado. O que me fez quase tremer foram os olhos brilhantes daquela molecada entediada, desesperada por emoção, delirando de prazer sádico quando deveriam estar chocados. Isso já não é coisa da idade. É doença. E uma doença espiritual, difícil de ser diagnosticada e remediada, porque seu agente é normalmente disfarçado, e permanece desconhecido. Psicólogos simplistas aceitam essas barbaridades como naturais de uma fase em que os hormônios estão pipocando. Educadores vulneráveis caem no discurso psicológico, e - se esquivando de qualquer responsabilidade - somam mais um, o dos sociólogos esquerdistas: o de que essa barbaridade é conseqüência da "desumanidade do sistema" em que vivemos. Os pais, consumidos por exigências profissionais, acabam desorientados e ausentes. E assim todos desculpam os principais responsáveis pelas imbecilidades juvenis, como a que vi acontecer na porta da casa de jogos de computador: os próprios jovens imbecis.
A arte de viajar
Alain de Botton é um escritor erudito que resolveu tornar-se popular - e escreveu Como Proust pode mudar a sua vida e As consolações de filosofia. Só que sem dispensar a ironia - presente mesmo em seus títulos - e a qualidade de seu estilo. Alain de Bottom escreve com cuidado e precisão - e seu último livro publicado no Brasil, A arte de viajar, foi especialmente bem traduzido por Wádea Barcelos. Os apreciadores dessas duas artes - a literatura e a viagem -, portanto, precisam correr e comprar os seus exemplares.
O livro é composto por relatos de experiências pessoais, de viagens e leituras, em lugares óbvios - Amsterdã, Madri, Londres - e remotos - Barbados, Sinai, América Latina. As impressões de viajantes e escritores ilustres são muito bem escolhidas, captadas e descritas com cuidado por Botton: Ruskin, Van Gogh, Flaubert, Humboldt, Wordsworth.
O modelo de literatura praticado por Botton é exatamente o que falta no Brasil: que é a combinação equilibrada, em alto nível, entre a erudição e o divertimento. É onde deveriam estar situadas nossas crônicas de jornal, se os leitores fossem mais exigentes. Quem sabe a leitura de Botton os ensine a ser.
Porque A arte de viajar não insiste apenas no estímulo provocado por impulsos externos, aqueles que qualquer ignorante, ao visitar um país diferente, é capaz de sentir. Botton - ao ligar escritores de qualidade a lugares maravilhosos - provoca também a capacidade de percepção do viajante, que vai muito além de leituras de guias e roteiros de viagem. E mostra que, para um espírito aberto e atento, mesmo um quarto fechado - como podia ser para J.-K. Huysmans - pode ser infinitamente interessante. Ou, para satisfazer sua curiosidade, o mundo inteiro - como no caso de Humboldt - pode não ser suficiente.
Ai,Eduardo.Essa sensação de gostar da dor...eu vejo quando minha mãe e as vizinhas comentam que algum vizinho está morrendo de câncer , ou em como está sendo difícil tratar de seu filho adicto ou em quanto têm gastado em remédios para úlceras,para dor nas costas ... é um prazer .Eu presto muita atenção em seus rostos . É um prazer.
Eduardo.
Acompanho suas crônicas há algum tempo, e gostaria de dizer algumas poucas coisas. Primeiro, que de fato a esquerda tem um problema neste país; um não, na verdade vários, sendo o principal deles a falta de percepção do lugar que ocupa, ou ao menos a definição de qe lugar deseja ocupar. Também concordo com algumas críticas que faz à esquerda e até mesmo à FFLCH, local onde estudo. Na verdade, acho que se pessoas como eu, que gostariam de um dia fazer qualquer coisa capaz de promover alguma mudança "boa" deveriam, antes de mais nada, aprender com pessoas como vc, que na lógica mais barata seria tidas como de "direita" o que significa saber qual é seu o seu lugar e que comportamento se deve esperar a partir disto.
Isto não é uma crítica, na verdade, é apenas a constatação de que, muitas vezes, falta a alguns intelectuais uma coisa essencial: política. Não o conhecimento político adquirido nos alfarrábios trotskistas ou leninistas, mas a concepção política que me parece mais ... como poderia dizer?
Refinada. É desta sofisticação política que sinto falta em alguns "camaradas" meus; e, para adquirí-la, talvez oque falte, e imagino que concorde comigo neste ponto, seja a observação sobre como as coisas de dão não só no tapetão do Senado, mas nas relaçòes de poder que presenciamos na vida.
O que quero dizer com tudo isto?
Na verdade, a mensagem é simples: depois de alguns meses lendo sua coluna, gostaria apenas de manisfestar-me dizendo que nem toda a esquerda é burra e, embora o grau de sofisticação da esquerda atual seja praticamente nulo, colunas como as suas conseguem, em alguns poucos trazer para a discussão as coisas que pontuei acima. Se a esquerda no Brasil se sofisticará? Não tenho resposta a isto. Mas quis que soubesse que, por incrível que pareça, aquilo que seria taxado como "reacionário" em suas crônicas, para mim, que já não penso mais nestes termos, promovem reflexões que, mesmo discordantes das tuas opiniões, vao um pouco além do "direitista reacionário" contra a "militante revolucionária", termos que de tão desgastados perderam o sentido.
PS.: Ainda discordo de várias coisas que vc escreve.
Cordialmente, um Abraço.