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Sexta-feira, 28/5/2004
Vida virtual, vida real
Julio Daio Borges
+ de 14500 Acessos
+ 4 Comentário(s)

Não faz muito tempo, um amigo me escreveu dizendo que estava tendo problemas com a internet. Contou que sempre fora um usuário entusiasmado mas que, ultimamente, a Grande Rede estava ocupando vastas porções de sua vida. Não exemplificou e não revelou muitos detalhes, da sua existência virtual, mas eu entendi o que ele quis dizer. Aparentemente, meu amigo estava sofrendo de uma compulsão que a muitos atinge, a ponto de se perder a noção do que é real e do que é virtual na vida.

Além dessa pessoa que me é próxima, e que eu não desconfiava ser internet addicted, conheci muita gente que levava duas vidas: uma na Grande Rede e outra fora dela. É natural, eu trabalho com internet e muitos tipos assim surgem no dia-a-dia. No começo, até, eu achava interessante forjar uma existência paralela e explorar suas possibilidades, mas depois comecei a achar o negócio meio doentio.

Quem escreve na internet, seja por diversão, seja profissionalmente, já topou com fantasmas assim. Em geral, opositores ou críticos das nossas idéias, que não querem revelar sua identidade mas que desejam ardentemente combatê-las. Então emitem um comentário, usando nome e e-mail falsos. Alguns chegam a criar uma caixa postal para isso mas, mesmo assim, não posso caracterizar essa atitude como patologia - pois é relativamente comum nos meios.

O que começou a me espantar foi um sujeito que, já há alguns anos, embarcou numa discussão insistente com um colunista, e este - caindo na dele - chegou ao ponto de marcar um encontro para resolver a disputa como se fosse um duelo. Os ânimos estavam exaltados, mas ninguém morreu. Quem "assinava" as mensagens me enviava cópias delas clamando para que eu "tomasse uma atitude". Não tomei, claro. O missivista eletrônico acabou sumindo.

Abrindo um parênteses, é impressionante como ilustres desconhecidos se sentem autorizados a proferir juízos definitivos sobre o que escrevemos - e depois ainda esperam que lhes seja conferido algum crédito. Por que vou acreditar na opinião de uma pessoa que, no mínimo, nunca vi e que, no máximo, para mim antes não existia? Mas acontece todo o tempo. Talvez porque os escritores sejam, por natureza, inseguros e se abalem com qualquer coisa, ou se derretam diante de um elogio supostamente amigo. O fato é que o "famoso quem" não raro atinge os seus objetivos. Escrevinhadores jovens e inexperientes são presas fáceis para as suas armadilhas.

Mas voltando: o fenômeno foi chamar minha atenção quando percebi que, além de inventar um pseudônimo e usá-lo em situações onde é melhor se manter incógnito, alguns internautas criam para si uma vida inteira novinha em folha. Porque uma coisa é ser comentarista esporádico de fórum, e até se exceder às vezes, outra - bem diferente - é "se acostumar na fantasia" e viver uma identidade falsa como se fosse verdadeira.

Vi isso em blogs. Pessoas que se entregam a cada frase mas que insistem em dizer que são "uma personagem de romance". Então eu me pergunto: que ser humano é esse que, provavelmente vivendo uma vida miserável, precisa se alimentar de uma aventura romanesca na internet, de uma realidade que - fora da Web - não existe?

Até aí, cada um é livre para ser louco e extravasar suas loucuras como quiser. E o problema não é tanto de quem publica uma porção de delírios, para o seu próprio deleite - o problema é de quem embarca nessa viagem, numa insanidade coletiva, e até "convive" com essa "pessoa", chegando a tomá-la como conselheira da sua própria vida. Se o primeiro tipo se sentiu Napoleão no hospício e foi proclamar isso aos quatro ventos, o que dizer do segundo que - não satisfeito - resolveu seguí-lo? Isso, para mim, é doentio.

Como se não bastasse, encontrei blogueiros que montavam outros blogs para elogiar a si mesmos. Tinham o trabalho de compor uma personalidade inteira, com nome, idade, endereço e preferências, para sustentá-la durante anos e para, no passo seguinte, consagrá-la através de outra personalidade, igualmente inventada. Quando conto essa história, o interlocutor em geral comenta: "É preciso tempo..."; "Haja tempo!"; "Como é que a pessoa arranja tempo?". Eu não sei; e nem quero saber.

Aliás, que realizem isso em blogs, e que haja uma platéia adestrada para bater palmas, não é algo que me preocupe realmente. A doença só foi me incomodar agora, recentemente, quando percebi que - dentro do próprio Digestivo - eu poderia estar publicando gente assim: que, fora da internet, não existe. Uma vez, inclusive, liguei para um colaborador e ele, ao atender, se embananou todo quando o chamei pelo nome que costumava assinar. Ou seja: era um nome falso; apesar do telefone verdadeiro (veja a que ponto chegamos...).

Felizmente, hoje, não entra mais ninguém no site sem que eu não tenha visto, pelo menos, a cara, e que não tenha um endereço (postal) - verdadeiro. Infelizmente, porém, muita gente ainda sofre com esses "trotes" da vida virtual. Transformam a sua vida real num inferno, num tormento, tentando combater esses pequenos demônios da internet - que, como o spam, tendem a crescer exponencialmente. Aqui, por exemplo, fechamos os fóruns e esses "caronas" diminuíram bastante. Mas, e quem está ciberneticamente exposto? Nélson Rodrigues repetia que se as pessoas soubessem da vida sexual umas das outras, ninguém se olharia na rua. Pois eu digo: se os internautas soubessem da vida virtual uns dos outros, quase nenhum se olharia na rua também.


Julio Daio Borges
São Paulo, 28/5/2004

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01. Saint-John Perse: o oxigênio da profundeza de Fabrício Carpinejar


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* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
26/5/2004
18h27min
A sua analise do personagem internauta tem muita propriedade. Eu vim parar aqui por causa do seu convite no Orkut. E aqui mesmo, lendo o seu texto, estava a me perguntar se você é quem diz ser. Olha só, acho que estou num site confiavel. Sempre estou a me perguntar se as pessoas são realmente o que dizem ser nestas comunidades. Mas até agora tenho me deparado com pessoas que parecem dizer a verdade. Certamente é um comportamento doentio este de se fazer passar por outra pessoa. Por vezes, pode ser apenas uma forma de proteção, de manter sua integridade física e moral. Entrei lá no Orkut a convite do Nemo Nox, que por sinal, conheci em outra comunidade, o Friendster. Está aí, esta rede tem me levado a conhecer pessoas muito interessantes, amigos e parceiros de projetos. Sem dúvida isto seria impossível, ou quase, sem a rede.
[Leia outros Comentários de Elyene Adorno]
27/5/2004
14h06min
O que existe em nossa sociedade doente de hoje é um exagero para tudo. Esse tipo de moléstia (múltiplas personalidades) provavelmente existe desde o início dos tempos e já foi estudada por grandes gênios como Freud. A diferença é que com a internet ficou mais fácil de se multiplicar quase tudo e os doentes adoram isso. Por enquanto, ainda acho que quem faz isso é "ponto fora da curva". Ficarei realmente preocupado quando isso se tornar normal. Ações como a sua, de coibir esses "free time lovers", são um exemplo para todos da rede seguirem. Um abraço, Alfredo.
[Leia outros Comentários de Alfredo Mello]
28/5/2004
15h18min
Dentro ou fora da rede, às vezes é difícil saber se uma pessoa é aquilo que diz ser. A Internet é ambiente mais do que favorável para quem deseja viajar na fantasia. Lugar ideal para expressar variados tipos de loucura. Mas, como diz a Elyene Adorno aí em cima, a rede é também um lugar onde encontramos gente amiga e interessante. De qualquer forma, é uma forma de inter-relacionar-se... com todos os riscos que isso envolve, no mundo real e virtual. "Viver é muito perigoso", já dizia o Riobaldo - e, nisto, talvez, consista toda a magia.
[Leia outros Comentários de Maura Maciel]
20/6/2004
11h51min
Caro Julio, embora solidário à sua inquietação, acredito que a intenção (mesmo meramente institiva) das pessoas cometerem o desatino de assumir outras personalidades/vidas, sempre houve. O que faltava era o meio. A Rede possibilita essa e outras patologias, como a pedofilia, o tráfico, o terrorismo. A Rede é igual uma prateleleira de supermercado ou de uma banca de revista, cada um pega o quer e lhe dá o uso que quiser.
[Leia outros Comentários de Bernardo Carvalho]
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