O documentário nacional O Prisioneiro da Grade de Ferro é um filme de memória. Apesar de resgatar uma realidade – o cotidiano de presos dentro do cárcere –, o filme retrata o Carandiru, presídio paulistano já desativado e em parte demolido há cerca de alguns anos. E essa memória resgatada está explícita e evidente – além de ser consciente – logo no início quando as cenas da demolição dos prédios do Carandiru são mostradas de trás pra frente, ou seja, o que foi destruído aparece sendo “reconstruído” através de um truque de edição. Assim, parte-se de uma realidade atual – o Carandiru não mais existe como presídio – para um tempo passado – o Carandiru reconstruído e resgatado. Mas há um detalhe: a realidade de dentro do Carandiru não era exclusiva daquele espaço, ela permanece em toda prisão brasileira.
Por esse início já temos uma questão a ser levantada dentro e pelo documentário de Paulo Sacramento: o que é documentário no cenário atual? Se a linguagem documental é a captação de uma realidade, sem artifícios de dramatização e da ficção, o fato de reconstruir o Carandiru, por si só, já é uma ruptura com a esse conceito. Portanto, um artifício de montagem introduz um mundo todo que seria a realidade.
Essa discussão se potencializa quando temos em mente que o filme foi feito em boa parte com imagens captadas pelos próprios presos, daí o subtítulo do filme ser “Auto-retratos”. Evidente que esse fato é um chamariz para que se conheça o “verdadeiro Carandiru”, uma jogada de marketing bem utilizada, mas que não deixa de ser coerente e justa. Uma equipe realizou no presídio uma oficina de cinema e entregou aos detentos câmeras digitais para que filmassem o cotidiano da prisão. O resultado dessas oficinas, somado a filmagens feitas pela própria equipe no local, forma o todo que é O Prisioneiro da Grade de Ferro.
Como discutir uma realidade cujo filtro são os próprios presos? Aí se diferencia a visão – que não deixa de ser uma interpretação – de Prisioneiro para com o filme de Babenco, Carandiru. Em termos de conteúdo, ambos mostram praticamente as mesmas coisas, com exceção restrita à linguagem. A diferença primordial não está em ser o primeiro um documentário e o outro uma obra ficcional baseada em fatos reais, a diferença reside na não-intermediação dos fatos relatados.
Enquanto Carandiru é uma adaptação para o cinema de um livro escrito e baseado na convivência de um médico com os presos e suas histórias, Prisioneiro corta essa linha de intermediação e liga espectador diretamente aos presos e seu mundo. Assim, podemos traçar as seguintes linhas de direção de sentido nos filmes:
Carandiru: espectador – Hector Babenco (diretor de Carandiru) – Dráuzio Varella (autor de Estação Carandiru) – presos (em partes, “câmeras” e diretores de O Prisioneiro da Grade de Ferro) – realidade ficcionada
O Prisioneiro da Grade de Ferro: espectador – presos (Prisioneiro) – realidade “real”
Assim, tem-se que Prisioneiro nos leva à realidade muito mais diretamente (óbvio que ser um documentário já envolve esse rótulo de realidade, mas deve-se ter em conta qual o recorte dessa realidade, de qual realidade se fala e como se fala dela), o que é impossível de negar. Mas onde se quer chegar aqui desde o início é que Prisioneiro é um documentário que pisa em estratagemas próprios da ficção, assim como a condução da história não escapa das manias da literatura e da narratividade ficcional (vejam os livros de Fernando Morais, por exemplo, que são romances vendidos como história, como realidade, porque escritos com base em pesquisa a documentos e relatos históricos). Uma verdade se apresenta como verdade, mas para tanto aproveita formas de outra linguagem, no caso, do cinema de ficção.
Dentro desse esquema, Prisioneiro é um belo exemplo de documentário da recente safra. Mas, fundamentalmente, não se deve esquecer que o cinema não é só filmagem. A palavra final está na edição, na montagem, na colagem dos planos disponíveis. E é aqui que Prisioneiro se resolve enquanto filme e enquanto documentário histórico que tem uma mensagem e busca ter eco na realidade. É na hora da edição que o sentido se faz pleno e o círculo se fecha diante desse recorte de verdade. De mais de 170 horas de gravações, Sacramento utilizou duas horas e três minutos. Onde estaria a verdade, o real absoluto nessa ínfima parte?
Portanto, a questão de um filme que se foca na realidade verdadeira dos presos no Carandiru está abatida justamente porque quem tem a última palavra não são os presos. E, com farto material, o filme de Sacramento não seria igual ao de um preso, ou ao de Hector Babenco, ou ao meu ou ao de qualquer leitor. São infinitas verdades possíveis dentro de infinitas versões possíveis. O real de O Prisioneiro da Grade de Ferro não deixa de ser produto subjetivado.
Dentro disso, Sacramento foi muito habilidoso em costurar as cenas realizadas pelos presos e por sua equipe. Não há identificação do que foi filmado por algum preso e o que foi feito pelo diretor e equipe, com exceção das cenas em que fica clara a autoria, como as que retratam a noite de um detento, quando os presos filmaram dentro da cela seu amanhecer enjaulado da cidade. Em todo o filme não há som algum que não esteja em cena (chama-se o som de fora da cena captada de não-diegético, em oposição ao som diegético, aquele que faz parte do que é filmado). Não há trilha sonora (como em Ônibus 174, de José Padilha, em que ela dita o ritmo do filme e das emoções dos espectadores) nem narração em off (o que invocaria um narrador, de quem estaríamos próximos e não dos objetos retratados). Muitas vezes um som de uma cena vem antes da própria imagem, antecipando e invadindo a cena anterior, mas nunca um som extraplano. A voz é apenas dos presos: eles explicam, reclamam, choram, confessam, rezam, cantam, justificam, vivem e morrem... Temos em cena total unilateralidade porque a opção do filme foi exatamente essa. Não se objetivou discutir o porque dos presos estarem lá, que crimes cometeram, como fazer para melhorar aquilo, condições e tal. Buscou-se o retrato puro e simples, ou então, dentro da proposta do diretor, diversos auto-retratos sem se preocupar com discussões teóricas ou tentar explicar com razões sócio-políticas o porquê daquilo. Não há contexto em Prisioneiro. Temos apenas seu texto, pois o contexto está todos os dias na mídia, no cotidiano do brasileiro médio. (Novamente volto a Ônibus 174, em que o contexto de vida de Sandro do Nascimento, o seqüestrador do ônibus em questão, é resgatado e o cenário sócio-político é comentado e debatido por especialistas).
Na mensagem de Prisioneiro está sua manipulação, assim como em Tiros em Columbine, de Michael Moore, e ela justifica tal fato por si só. Sabemos que os presídios estão superlotados e os presos vivem em condições subumanas (o filme mostra muito bem isso). Nenhuma imagem é inocente, tudo que é mostrado quer reforçar um valor, que pode ser considerado ideológico. Ideologia não no sentido político, mas como uma visão de mundo, de sociedade. E essa visão apresentada no filme é oposta à dos governantes, como bem demonstra a inserção no final do filme que traz o governador Alckmin inaugurando um novo presídio e fazendo apologia de seu governo por ser aquele que mais presídios construiu e que mais vagas criou. Qual a mensagem aqui e com a qual fecha Prisioneiro? A opção dos governantes não é combater essa realidade bárbara retratada no decorrer de quase duas horas, mas sim seu contrário – manter e proliferar esse horror!
O Prisioneiro da Grade de Ferro constitui um marco na história do documentário nacional contemporâneo. Paulo Sacramento “desmonopolizou” um dos maiores poderes da sociedade atual – o poder de fabricar imagens. Com seus auto-retratos, os presos do Carandiru ganharam uma cara, um rosto (vide o final do filme com a apresentação e identificação de todos os participantes), uma forma de existir, mesmo que seja em imagens. E esses rostos marcados pela vida e pela violência formam um enorme mosaico da tragédia brasileira, que pode ser chamada de desigualdade, injustiça, crueldade, criminalidade ou somente de Carandiru, como o é em O Prisioneiro da Grade de Ferro.