Em seu último artigo neste Digestivo, Julio Daio Borges discorreu, com a precisão que lhe é habitual, sobre o triste cenário da crítica nos dias de hoje. Com efeito, não são poucos os leitores que, atualmente, enxergam a crítica como algo que tende a ser (apenas) depreciativo. Os autores, por sua vez, também corroboram para essa "falência da crítica", posto que, muitas vezes, são os primeiros a responderem com rispidez qualquer resenha que não lhes seja favorável. No entanto, nem tudo está perdido. Nos livros Poemas Reunidos: 1934-1953 (Ed.José Olympio, 388 págs.) e Crítica e profecia: a filosofia da religião em Dostoiévski (Ed. 34, 285 págs.), dois ensaístas provam que a crítica literária pode ir além da resenha estritamente factual e provocar o leitor a conquistar o olhar analítico tanto na literatura como nas questões relacionadas ao cotidiano.
Dylan Thomas
Poemas Reunidos apresenta a seleção feita pelo poeta galês Dylan Thomas (1914- 1953) de sua obra poética entre 1934 e 1953. São, em verdade, quase cem poemas em que o leitor trava contato com a força da escrita de Thomas, que pode ser considerado um romântico do século XX. Isso porque sua vida foi dedicada à poesia e aos excessos (morreu em decorrência do alcoolismo), que não foram poucos durante seus 39 anos. É possível afirmar até que sua vida se confunde com a poesia que ele escreveu. No prefácio, o também poeta e tradutor Ivan Junqueira traça interessante um perfil do escritor. Nele, vale a pena ressaltar as inúmeras intervenções explicativas acerca da poesia de Dylan Thomas. A propósito, nas palavras de Junqueira: "A poesia de Dylan Thomas revela pontos de inervação problemáticos dentro da tessitura poética da língua inglesa. Antes de mais nada, Thomas não é propriamente um poeta inglês, mas galês, 'o mais galês dentre todos os poetas maiores de língua inglesa', conforme sabiamente observa seu biógrafo Constantine Fitz Gibbon."
Ainda segundo a análise de Ivan Junqueira, nota-se como a relação entre Dylan Thomas e as palavras era conflituosa, sempre em busca da palavra certa e que pudesse traduzir com rigor o que ele desejava expressar. O próprio poeta indica essa preocupação: "Sem trabalhar com as palavras por três meses estéreis nas sangrentas vísceras do ano opulento e na grande bolsa de meu corpo/ censuro amargamente minha pobreza e meu ofício" ("Sem trabalhar com as palavras"). Nesse sentido, é curioso perceber que a escrita de Thomas não faz uso da rima, a não ser para poemas mais longos, como maneira de expressão poética. Sua principal matéria-prima, se assim se pode dizer, são as metáforas, com as quais o texto atinge o ideal perseguido: "Um verme descreve o verão melhor do que o relógio/ A lesma é um calendário vivo dos dias/ O que me contaria ela se um inseto intemporal/ Disse que o mundo desgasta?" ("Aqui, nessa primavera").
Além disso, fica evidente a busca de Dylan Thomas por alguns temas em sua poesia. Conforme análise de Junqueira, o nascimento, a morte, o amor e a infância são "assuntos" que aparecem de maneira recorrente em sua poesia. Nesse caso, os versos não só adquirem ao mesmo tempo um teor sombrio e de alguma sacralidade. É o que ocorre no trecho a seguir: "Deita tranqüilo, dorme em paz, tu, com tua chaga/ Que arde e se retorce na garganta. Por toda noite/ Sobre o mar silencioso, escutamos os rumores/ Que vêm da chaga envolta num lençol de sal."
Já em "A mão que assinou o papel", há a justa combinação entre a estética da forma com a virulência denunciada pelo poema: "A mão que assinou o papel derrubou uma cidade/ Cinco dedos soberanos tributaram a respiração/ Duplicaram a esfera dos mortos e reduziram o país à metade/ Esses cinco reis levaram um rei à morte. (...) Há mãos que regem a piedade como outras o céu/ As mãos não têm lágrimas para derramar".
Não obstante o lirismo dos poemas, a obra de Dylan Thomas era - e ainda é - considerada difícil pelos leitores de um modo geral. Por essa razão, a edição de Poemas Reunidos traz também, no seu epílogo, uma seção de notas comentadas. Para o bem e para o mal, esses comentários tendem a seguir a erudição poética do autor. Desse modo, para aqueles que se assustarem com alguns traços de hermetismo, vale a pena prestar atenção num dado que é fundamental: a musicalidade da poesia de Dylan Thomas. Ele mesmo, aliás, realizou uma série de leituras em programas de rádio (de seus poemas e de outros autores) que são tão celebradas quanto seus próprios livros.
Talvez o único detalhe que não consta no perfil de Ivan Junqueira é o fato de Dylan Thomas ter inspirado um dos grandes nomes da música pop do século XX: Bob Dylan. Poucos sabem, mas Robert Allen Zimmerman adotou o primeiro nome de Dylan Thomas e seguiu uma trajetória fora do comum no rock, talvez fazendo referência ao poeta galês, que escreveu: "As pedras que rolam não criam limo", just like a rolling stone.
Dostoievski
Crítica e profecia é, como se lê no prefácio, resultado da transcrição de uma série de aulas ministradas pelo professor e ensaísta Luiz Felipe Pondé, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião da PUC de São Paulo. Trata-se, assim, de um estudo concentrado da obra do escritor russo Fiódor Dostoievski; contudo, o professor não se fixa no estilo ou nas histórias abordados pelo escritor, posto que muito já se analisou nesse sentido. Em verdade, Pondé propõe ao leitor uma análise que supere a obra de Dostoievski, conforme ele mesmo escreve: "Não foi meu objetivo neste trabalho estabelecer um estudo de crítica literária da obra dostoievskiniana, mas sim um ensaio de crítica religiosa que apontasse o que as reflexões presentes nas falas polifônicas de Dostoievski podem nos revelar de seu agressivo olhar crítico, porque religioso, sobre o mundo moderno contemporâneo."
Nesse sentido, a despeito das referências constantes a teóricos como Heschel e Bakthin, pode-se dizer que a principal característica do livro é o fato de existir a busca por um significado que não pertença somente ao chamado universo da literatura. Mais do que isso: é uma obra útil também para a compreensão da condição humana. E é aqui que a obra de Dostoievski cai como uma luva, conforme os apontamentos de Pondé, uma vez que romances como Crime e Castigo e Irmãos Karamázov são, além de obras-primas, peças-chave para esse entendimento. Segundo o professor: "análises político-sociais abundam; faz-se necessário deixar falar a filosofia da religião que existia em Dostoievski e, assim, colocá-lo em diálogo com homens e mulheres que partilhavam de suas angústias existenciais e intelectuais."
Com isso, muitas idéias prontas acerca da obra de Dostoievski ganham nova forma, para não dizer significado, a partir de um estudo de uma ótima fundamentação teórica. Essa virtude, no entanto, pode se tornar um obstáculo, já que muitas das referências exigem algum conhecimento prévio das fontes, como o próprio Heschel e com Bakthin. Ao leitor que vencer essa barreira (as notas de rodapé são de ótima ajuda), surge a possibilidade de compreender o escritor Fiódor Dostoievski como crítico do pragmatismo da modernidade, produto, como explica Pondé, de sua visão de mundo religiosa. E, de fato, ao longo dos capítulos, vê-se que Dostoievski não concebia o mundo que prescindia da religião, isto é, que não a vê como pedra fundamental da humanidade e de sua condição, como ele mesmo sugere em Diário de um escritor: "Os pregadores do materialismo e do ateísmo, que proclamam a auto-suficiência do homem, estão preparando indescritíveis trevas e horrores para a humanidade sob pretexto de renovação e ressurreição".
Como no exemplo acima, o livro mescla as análises de Pondé com fragmentos dos romances de Dostoievski, tornando o tema mais próximo do leitor, como o trecho que segue: "Vale relembrar que, para Dostoievski, ética sem religião (tendência metateórica ativa mesmo na teologia ocidental hoje) é um tema absolutamente equivocado, que não leva ninguém a nada, isso porque, aos sairmos do universo religioso, entramos no universo do niilismo. Afinal de contas, citando o próprio Ivan Karamázov, 'Se a alma mortal e Deus não existe, tudo é permitido'". Essa aplicação da teoria à condição humana, proposta em Crítica e profecia, que aborda desde a religião até a ética do cotidiano, mostra como a crítica literária pode ser menos abstrata do que se imagina.