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Quarta-feira, 14/7/2004
Sobre bebês e parasitas
Ana Elisa Ribeiro
+ de 7700 Acessos
+ 2 Comentário(s)

Uma descoberta interessante na vida de uma mulher saudável é que a menstruação pode falhar. Os motivos para que isso aconteça são vários, inclusive de fundo psicológico, mas o mais impactante talvez seja a gravidez.

Quando se tem pouco mais de 12 anos, as coisas podem parecer desmoronáveis. E devem ser. Mas quando se tem quase 30, as coisas são, no máximo, reordenáveis. É desejável que uma mulher adulta saiba o que fazer depois de uma atitude impensada ou de uma transa surpreendente.

Outras descobertas importantes decorrem da revelação de um exame de gravidez que dê positivo, uma delas é a de que mulheres são bichos e alojam crianças em seus ventres por longos nove meses de gestação. Durante esse tempo, os guris vão de embrião a feto em passos lentos. A forte impressão de que os nove meses estão mais concentrados nos dois últimos meses de espera deve ser comum. O peso de uma barriga de mais de três quilos, a desproporcionalidade, a saudade das calças jeans e dos cadarços, a dificuldade de locomoção e o esforço para se sentar e levantar são peculiaridades dessa mulher pouco ergonômica e muito prenhe.

Rezam as lendas que os enjôos, as crises de choro e a falta de adaptação temporária a lentes de contato são quase obrigatórios. Também os inchaços, a opacidade dos cabelos e a baixa hormonal que faz a libido desaparecer.

Entre outras coisas, uma gravidez pode ser apenas uma enorme espera. Espera feliz. A criança é monitorada por médicos, ultra-sonografias e exames de urina. Muita água, pouco calor, oxalato de cálcio e até os pêlos param de crescer em velocidades normais.

Das saudades que tenho, clareio a de depilar a virília enxergando o desenho dos pêlos e a de cortar as unhas dos pés sem sentir dores nas costas.

Mas a criança evolui. Em velocidade impressionante, ganha peso e formas de gente. É possível saber quantos dedos tem, o tamanho dos ossos e a formação do céu da boca.

Aliviados, os pais assistem a ultra-sons de última geração, enquanto os avós desaposentam as agulhas de tricô e fazem casaquinhos.

As receitas para ter leite nos peitos. Assim como as dicas sobre resguardo e cicatrização. Papai deixa mamãe quieta, não provoca com medo de fazer sexo e importunar o bebê. Uma mulher grávida lembra um baú de mágica, um kinder ovo ou uma mulher grávida apenas.

Mas das coisas mais impressionantes que uma mulher grávida pode viver na gravidez é a sensação de que os outros podem decidir-lhe a vida ou torná-la burra e inútil, ao menos por um tempo. De fato e com efeito, para alguns seres humanos, uma mulher grávida tem no cérebro um cisticerco que a impede de pensar e trabalhar como um profissional normal. A criança, para esses indivíduos, é uma espécie de parasita que se aloja em área da cabeça da mãe. A profissional competente e eficiente de antes cede lugar a uma frágil e quebradiça membrana, talvez um habitáculo de guris, que não pode mais exercer as funções de uma mulher qualquer.

Culpa de quem? Dos chefes? Das aulas de biologia insistentemente cabuladas? De não ter tevê a cabo para assistir ao Animal Planet? Do mundo machista? Do mundo cão? Das próprias mulheres que se fazem de frágeis quando estão prenhas?

Não interessa mesmo que resposta se dê à questão. O fato é que uma mulher grávida é uma mulher grávida é uma mulher grávida. E com isso ela pode acessar uns mistérios e viver outros. Nada, no entanto, tenho certeza, que a impeça de atuar intelectualmente no mundo.

Os peitos cedem a cada dia. As mamas pequenas da brasileira tornam-se xuquinhas transitórias. Mas o cérebro, quando é bem-formado, continua lá, apinhado de suas funções diversas e polivalentes. É preciso esclarecer, para alguns, que bebês se alojam no útero e que o buraco é bem mais embaixo.

passei os últimos meses lendo muito
evitei os assuntos mais soltos e mais artísticos. li uns livros de poesia, mas não escrevi nenhuma resenha. uma lástima, porque quis fazer isso por diversas vezes. li uns poucos livros de contos. não resenhei porque não deu tempo. romances... nem pensar. fazem dispender um tempo que eu não tinha. precisava desesperadamente ganhar dinheiro. fui trabalhar como uma louca. juntei uns cobres pra comprar os apetrechos de um filho que ainda virá. li muito artigo científico. e, principalmente, passei os últimos meses lendo embriologia e puericultura. aprendi sobre glândulas mamárias e contracepção. sei mais sobre lábio leporino do que a maioria dos meus amigos. medicina fetal e a segurança dos tipos de partos. meu irmão biólogo pediu que eu parasse de ler os livros sobre formação do feto. ali eu encontrava de tudo o que meu menino não poderia ter. também aprendi sobre genética e ultra-sonografia de última geração. ouvi atentamente enquanto o médico desenhava e explicava sobre o útero e seus movimentos. o bebê e seus movimentos. a mãe e seus movimentos psicológicos.

a vida deu piruetas. eu fiquei efusiva e às vezes eu chorei. e eu chorava durante o banho, que é quando a lágrima não se assume. conversei muito com minha barriga temporária. tive a impressão de que o bebê revidava uns meus trechos de contos ruins. levei toda a minha família comigo na montanha russa da gestação. pra ficar completamente feliz, só me falta mudar de emprego.

contagem regressiva
fazia tempo que eu não ficava à-toa pela manhã e pela tarde, não vagava pelas lojas à procura de artigos necessários. não perdia a hora e me esquecia de colocar o relógio de pulso. tenho uma coleção de uns oito relógios... alguns deles são bonitos, outros são funcionais. e estão todos guardados. parece-me que não precisarei de um relógio de pulso por algum tempo, porque o bebê será meu despertador, uma espécie de tamagochi de carne e osso. ainda não fiz a famosa mala do hospital. sempre fui assim, meio de improviso. acho um porre aquelas mulheres que ficam histérias e sombreiam tudo com gritinhos de desespero. não fiz charme nem pra subir escadas. também não passei mal ou me fiz de sensível. a gravidez ainda me parece primitivo como comer e beber água. estou contando os dias para o nascimento do neném, até porque a barriga me pesa a coluna, não me deixa depilar ou amarrar cadarços e me priva das minhas calças jeans. em agosto, quero trabalhar, então o nascimento dele me dá uma esperança o quanto antes. o bebê aguarda que os móbiles fiquem prontos e a porta do quartinho já tem lá uma placa: eduardo.


Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 14/7/2004

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
12/8/2004
21h33min
Oi, Ana Elisa! Sou enfermeira e meu trabalho tem sido ajudar mulheres a amamentar...estou às ordens... Gostei do texto, da maneira como colocas a tua maneira de sentir a gravidez. É bem isso mesmo. E as mulheres precisam ter textos assim, para se darem conta de que não estão sozinhas na parada e que suas dificuldades, seus medos, durante essa fase, não são só dela, mas muitas outras já passaram por essa estrada. Acho que ninguém gosta de ouvir, como resposta a uma queixa, frases do tipo "não é nada, todas as mulheres passam por isso"... Por outro lado, em textos como esse teu, a gente se sente meio irmã, meio assim do mesmo mundo... Continue escrevendo, levando a gente pela mão pelo teu mundo.
[Leia outros Comentários de C. Valderez F.Kohler]
15/4/2011
15h17min
Bonito relato. Creio que dentro dessas palavras, encontramos muito mais que palavras, encontramos um pouco de nós mesmos.
[Leia outros Comentários de Rebeca]
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