Se me contassem, eu não acreditaria. "Estou me sentindo uma rockstar", desabafou Rosa Montero, a autora espanhola de A louca da casa, depois de ser insistentemente abordada por crianças, jovens e adultos nas ruas de Parati - gente atrás de autógrafos, uma palavra amiga ou um mero afago gentil.
Isso não é comum entre escritores. Normalmente pensam como Chico Buarque, que, em Budapeste, declarou o óbvio: "A literatura não precisa se exibir". Depois teve de se corrigir, diante de Liz Calder, a idealizadora da Flip (Festa Literária Internacional de Parati): "Realmente, [essa declaração] talvez seja 'anti-Flip' (...) Pessoalmente, eu acho que o escritor tem de se mostrar, ir ao bar, sair por aí. Os escritores são bichos muito esquisitos".
São mesmo. E é impressionante que haja tanta gente interessada neles. Martin Amis, um dos mais conhecidos escritores ingleses das últimas décadas, tremia visivelmente diante da platéia - e, ao ler a si mesmo, enrolava a língua. Era evidente: fora do Brasil e fora da Flip, nunca tinha passado por aquilo. "Para Martin, o escritor é aquele sujeito que se sente mais vivo quando está sozinho", havia dito Isabel Fonseca, sua esposa, na noite imediatamente anterior.
Eu mesmo tive meu momento Quase Famosos e não me esqueci. Foi por causa de Caco Belmonte que, hospedado na mesma pousada, durante o café-da-manhã, cuspiu meu nome e meu sobrenome, tecendo inclusive loas ao Digestivo, quando eu apenas lhe informei que me chamava "Julio" e que vinha de "São Paulo Capital"...
Já o Angeli - que não é escritor, mas que em Parati era como se fosse - sorriu largamente e apertou minha mão, quando, passando-lhe meu cartão, contei que havia resenhado a nova edição de Wood & Stock. Mesmo o Verissimo, a celebridade mais evocada e mais reconhecível (e também a mais muda), demonstrou algum interesse e leu atentamente o nome do site, enquanto apalpava os relevos com dedos finos.
"No início, havia as pessoas que gostavam de falar e as que não gostavam de falar. Nós, escritores, não gostávamos de falar, então optamos por escrever. Acontece que agora [com eventos assim] temos de voltar a falar, além de escrever", concluiu Rosa Montero, desconcertada mas, ao mesmo tempo, decidida.
"Eu acho que tem a ver com a explosão da mídia. De repente, o jornal de domingo, que era o mais 'grosso' da semana, virou o padrão. E os jornalistas - para preencher os espaços vazios - descobriram que têm de escrever até sobre nós... escritores", ponderou Martin Amis.
"Não posso reclamar: viajo pelo mundo, conheço pessoas ótimas, hospedo-me em bons hotéis (...) No começo, eu me cansava de ter de explicar a mim e a minha obra. Até que, uma vez, escrevi um livro com prefácio - contendo todas as explicações. Não adiantou: as pessoas me pediam para explicar o prefácio; ou seja, me pediam para dar explicações sobre as explicações", arrematou Ian McEwan.
Então era essa a contradição mais flagrante da Flip: os escritores, por timidez ou por algum outro motivo, optaram pela escrita como profissão; não previam, porém, eventos literários e muito menos uma festa dessa magnitude, em que fossem - justamente ao contrário do que sempre foram - o centro das atenções.
"Virou um circo", confidenciou-me, à boca pequena, um certo editor de cultura. "Meu caro, você me perguntou se eu ia a Parati, mas eu não vou: não sou escritor", confidenciou-me, por e-mail, um outro. Os dois estavam lá. Mas tinham razão: havia, igualmente, à maneira de João Ubaldo Ribeiro, um certo constrangimento no ar...
Eu mesmo cutuquei Michel Laub que, de repente, para mim, surgiu entre um pipoqueiro e outro, na Praça da Matriz: "Michel, por que você não está lá [apontei para a Tenda dos Autores]? Você é mais escritor do que muitos 'escritores' por aí..." (Eu estava me referindo a Marcelino Freire, Joca Reiners Terron, João Paulo Cuenca e até a Adriana Lisboa.) Michel sorriu e se limitou a me informar que estaria mediando a mesa de Ian McEwan e Martin Amis. (Para qualquer pessoa minimamente esclarecida, a mesa mais importante da Flip...)
Escritores, embora evitem os holofotes, são seres extremamente vaidosos - e essa era a segunda contradição. "Muita gente se mete a escrever diários e a tomar anotações quando adolescente ou mesmo criança. Os escritores, também. A diferença é que as pessoas normais acabam superando essa fase; os escritores, não. Nesse sentido, eles são eternamente adolescentes - adolescentes que não conseguiram se livrar do diário" (Martin Amis, na coletiva).
Os escritores não são normalmente homenageados, muito menos valorizados de maneira espontânea, por seus leitores. Então quando o são, sempre surge alguém com uma lista de injustiças e de injustiçados. Eu tinha obviamente a minha: queria ver mais a "geração internet" (embora não aprecie os blogs); queria ver a Ana Elisa Ribeiro (embora ela estivesse dando a luz); queria ver o Fabrício Carpinejar; e queria que os jornalistas fossem considerados tão escritores quanto os "autores" da Flip.
É verdade que os escritores não têm geralmente sido prioridade nos mais variados meios. E é verdade, também, que essa "prioridade" precisa ser invertida de vez em quando. Mas, na Flip, os "autores" tinham - por vezes - uma ascendência desrespeitosa e uma desnecessária supremacia. Havia cadeiras reservadas para eles em todo lugar; e eu vi um sujeito entrando num restaurante aos berros porque uma suposta "mesa dos autores" havia sido inadvertidamente ocupada...
Enquanto isso, uma jornalista da revista Simples se aproximava de mim falando baixinho e perguntando se eu poderia escrever sobre seu livro. Ela era praticamente "autora", mas não tinha "acontecido" ainda - e não passava, portanto, de uma reles "jornalista", não desfrutando de nenhum privilégio especial por isso...
Era a terceira contradição da Flip. Se qualquer pessoa pode publicar um livro (ainda que pague por isso), por que os "autores" eram deuses na Flip e por que os "não-autores" eram cidadãos de segunda categoria? "Para escrever meu novo livro, eu me aproximei de um neurocirurgião muito cortês que me permitiu acompanhá-lo na sua rotina. Pude estar a seu lado inclusive nas cirurgias. Eu me paramentava, me vestia de branco e atravessava aqueles corredores longos onde os familiares se acumulam. Eles me olhavam e pensavam: 'Lá vai o doutor...' Então eu me sentia 'grande', eu me sentia 'maior'..." (Ian McEwan).
A quarta contradição diz respeito ao público. Se o Brasil é costumeiramente lembrado como um "país de não-leitores", como explicar os ingressos esgotados, os auditórios abarrotados, o respeito reverente... a escritores! E eu não estou falando apenas de Chico Buarque (que foi apontado, pela organização, como um dos maiores "autores" contemporâneos, mas - que me perdoe a Flip - não é, não). Nem estou falando de Caetano Veloso, que pouca gente viu passar este ano. Estou falando de Paul Auster - que deu aulas de cordialidade, sendo acompanhado por olhares silenciosos, quando circundava a Praça com sua esposa (sem quaisquer esquemas de segurança).
Afinal, por mais que se despejem críticas à Flip, ela conseguiu deslocar mais de 10 mil pessoas até Parati, para 5 dias com escritores tão obscuros quanto Colm Tóibín, Margaret Artwood e Pierre Michon. E eu vi uma moça, de uns 25 anos, tentando encontrar passagens (lidas no telão) do Ulysses de Joyce; e eu ouvi uma discussão - cansativa, vá lá - entre um casal gay, onde um era "o crítico" e outro era "o artista"; e eu encontrei um casal de meia-idade - morando em São Paulo, mas de Recife - que embarcava em elogios desbragados aos escritores. E não eram do meio; e não escreviam uma linha. Eram leitores. Lei-to-res.
"Sim, eu vejo um bom momento para a literatura contemporânea. Na verdade, não sei se há muitas pessoas lendo, mas, certamente, há muitas escrevendo." (Paul Auster)
"Quando publiquei meu primeiro livro, literatura era coisa para uma pequena esfera. Então não me incomodo se, de repente, esse tempo voltar - e a literatura se restringir, novamente, a apenas algumas pessoas -, eu me sentiria confortável do mesmo modo." (Martin Amis)
De um modo geral acho que o encontro esconde seus defeitos no nome, afinal é uma festa literária, não é um encontro acadêmico propriamente dito. Também fiz alguns comentários aqui.
Daio, você conseguiu dar uma visão geral da FLIP. Também estive lá, assisti à maioria das mesas e acho que a festa foi extremamente positiva. Claro que alguns autores foram maravilhosos e outros, como você sitou, ninguém sabe porque estavam lá. Mas o que realmente me impressionou foi a quantidade de gente jovem nas palestras (sem falar na do Chico ou do Caetano). Isso é um ótimo sinal! Espero que a FLIP continue, pois mesmo com erros e acertos, me parece uma iniciativa muito corajosa em relação à literatura. Nos dias em que a Flip aconteceu, a cidade de Paraty estava num clima de palavras efervescentes!
Julio, muito boa a tua "versão" da Flip. Acho a festa super válida, com seus erros e acertos. Qualquer coisa que estimule a leitura é positiva, e foi bom ver quanta gente jovem compareceu.
Eu vejo a FLIP mais como um encontro anual de amigos. Muita gente vai a Parati para conhecer "chapas" virtuais, divulgar seus próprios projetos, aproveitar as noites festivas, do que realmente para ir às palestras e mesas. Bom, ao menos foi o que eu vi alguns escritores e conhecidos meus literatos dizerem, tempos atrás. Isso não tira a importância do evento, claro. Mas não se pode negar que a FLIP é quase um "Rock in Rio" literário. Quero muito poder ir ao festival, se não na próxima edição, na de 2008. Me arrependo de não ter me programado pra ir este ano. Justo o ano que o Hitchens veio e o Safran Foer, autores de dois dos melhores livros que li este ano.