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Segunda-feira,
2/8/2004
Festa de família à brasileira
Lucas Rodrigues Pires
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Querido Estranho, de Ricardo Pinto e Silva, é um filme da tradição teatral brasileira em que a palavra é basicamente o que conta. Não espere muito em relação a cinema, pois a câmera está ali apenas para registrar o que é dito e feito, nada além disso. A força está no que é falado, não no que é mostrado. Esse artifício, que num primeiro momento pode ser acusado de falta de ousadia, acaba por ser um ponto a favor do texto, pois sem a forma (ou estética) pra chamar a atenção, os diálogos e a interpretação se transformam no único chamariz.
O filme marca a volta de Daniel Filho ao cinema à frente das câmeras. Sua trajetória comandando a Globo Filmes foi a mais bem-sucedida possível e sua empreitada pela direção - em 2001, com A Partilha - foi um sucesso comercial (mas não de crítica). Para o final do ano chega outro longa dirigido por ele, com Antônio Fagundes e Rodrigo Santoro no elenco.
Neste filme modesto que é Querido Estranho, uma adaptação da peça teatral Intensa Magia, de Maria Adelaide Amaral (a mesma que nos presenteou com as melhores minisséries da Rede Globo dos últimos anos - Os Maias e A Casa das Sete Mulheres), Daniel Filho é Alberto, um pai de família sessentão que vai receber os filhos para o almoço no dia de seu 64º aniversário. Ele mora com a esposa, Roma, e a filha caçula, solteira, já na casa dos 30. O dia amanhece com o casal acordando e se preparando para a festa. Em poucos minutos, as personalidades de cada um vão sendo delineadas e já se pressente o que virá. Um certo desgosto toma conta de Alberto, que vai aos poucos destilando suas amarguras. O desenrolar da trama recai na comédia dramática ("seria cômico se não fosse trágico"), com o desabafo de Alberto e um acerto de contas para com todos os integrantes daquela família - desde a mulher, fiel e omissa, até os filhos que se foram de casa. O resultado é o mais familiar possível (trocadilho impossível de escapar), com a identificação do espectador com alguns dos personagens. Querido Estranho, assim, se mostra como um Festa de Família (filme do premiado movimento Dogma 95, que acabou logo depois que começou), só que sem ousadia em termos estéticos e de linguagem cinematográfica.
O filme se passa quase todo dentro daquela casa de classe média num bairro indefinido de São Paulo. Aquela família poderia ser a de qualquer um, mas é a de Alberto e Roma, com os filhos Betinho, Tereza e Zezé. E os dramas de cada um, as frustrações frente ao pai, ao filho, ao marido surgem na tela em forma de palavras confessadas em segredo para posteriormente explodir em cólera, mágoa e rancor. Temos a frustração de Alberto por ser ele um joalheiro muito culto - leitor da melhor literatura existente, que vai de Machado de Assis a Tolstói - e amante da música erudita em contraste com a esposa leitora de Rebeca, Sabrina e outros folhetins similares, a subliteratura vendida em bancas de jornal. O filho que se casou muito cedo com a filha do padeiro para fugir da presença opressora e da convivência com o pai. Para completar o cenário, temos a filha política, candidata a vereadora, acusada pela família de não reconhecer o valor desta para a sua posição atual, e a filha caçula, que vai receber o namorado cinqüentão e ex-seminarista para o almoço e pretende anunciar o noivado ao pai. Um caldeirão de pólvora vai se formando e é Alberto o centro das atenções e dono das farpas mais pontiagudas e afiadas lançadas em cena.
No fundo, o que se vê em cena é mais um capítulo do confronto de gerações, de brigas entre pais e filhos (quase sempre entre as figuras masculinas), de visões de mundo, tal qual vimos recentemente no canadense As Invasões Bárbaras e no argentino Lugares Comuns. Eis um mundo que se esvai com tamanha facilidade e é substituído por outro que, politicamente (caso dos dois filmes estrangeiros citados) e culturalmente (caso de Querido Estranho), é mais pobre e menos radioso. O mundo utópico, das idéias, da cultura efervescente dos anos 60, cedeu lugar ao pragmatismo dos anos 90, do pós-Muro de Berlim, do liberalismo globalizante e generalizante. E essa transição é bem evidenciada na família pela relação pai/filho. Mas não há, em Querido Estranho, nenhuma espécie de enaltecimento da figura do pai. Ao mesmo tempo em que ele é o pai erudito, senhor de uma cultura digna de nota, é também similar ao pai autoritário e opressor da famosa Carta ao Pai de Franz Kafka. Ao final, a amargura contra a família por parte de Alberto nada mais é que uma reação à sua derrota perante a vida.
O tema da família é antigo e por demais conhecido, mas Querido Estranho supera essa sensação de déjà-vu com palavras fortes. Não recai no sentimentalismo, mantém a classe num tom crescente de emoção (tal como se acompanhássemos Alberto em suas doses de uísque) até o clímax final do conflito, que é de uma força emotiva e até certo ponto chocante. A atuação dos atores - principalmente da mãe, interpretada por Suely Franco, e de Daniel Filho - neste final é fundamental para esse clima. A expressão com que Roma fita Alberto depois de todas as patadas por ele dadas é de cortar o coração e faz o mais insensível dos mortais verter ao menos uma lágrima.
Após o clímax há uma espécie de prólogo, em que vemos o que de fato aconteceu e sentimos o verdadeiro espírito daquele dia chuvoso (e estranho) de aniversário. A vitória de Alberto, sua superioridade e sua absoluta independência de todos é revertida pela simplicidade da mulher, por sua postura diante da vida, ou seja, saber vivê-la conformada com o que lhe foi destinado. E aí temos a fala, proferida por Alberto, que fecha o filme e que é sem dúvida a mais forte, triste e que, de certa forma, admite sua derrota diante da vida. Ele diz à esposa: "Sabe o que eu mais admiro em você, Roma? É a sua incrível capacidade de ser infeliz".
Ser feliz é fácil, difícil é conformar-se com a infelicidade e seguir vivendo.
Lucas Rodrigues Pires
São Paulo,
2/8/2004
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